STF já tem maioria para criminalizar homofobia

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) já votou a favor de que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero seja considerada um tipo de racismo. Na prática, isso criminaliza a homotransfobia no Brasil.

Após cinco sessões, seis ministros – Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luis Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux – dos onze que compõem a Corte reconheceram haver uma mora do Legislativo em tratar do tema e que, diante desta omissão, este tipo de conduta deve ser abrangida pela Lei de Racismo (nº 7716-89).

Ao fim da quinta-feira (23/05), o presidente do STF, Dias Toffoli, suspendeu temporariamente o julgamento. A previsão é que a votação seja retomada no dia 5 de junho, diz o Terra.

A questão começou a ser debatida em 13 de fevereiro, quando foram ouvidos os autores dos dois processos (ADO 26 e MI 4733), a Procuradoria-Geral da República (PGR), a Advocacia-Geral da União (AGU), o Senado e grupos favoráveis e contrários à criminalização da homotransfobia.

Nas duas sessões seguintes, o ministro Celso de Mello, relator de uma das ações, apresentou seu voto. O decano avaliou que o fato do Congresso não ter legislado sobre o tema é uma “evidente inércia e omissão”, algo que a Câmara e o Senado negam.

Mello propôs que não seja fixado um prazo para que o Congresso edite uma lei sobre o tema, como pedem as ações, mas que, enquanto os parlamentares não decidirem, a homofobia e a transfobia sejam enquadradas na Lei do Racismo.

Segundo Mello, o conceito de racismo se aplica à discriminação contra grupos sociais minoritários e não só contra negros – um ponto controverso entre especialistas da área. O racismo é um crime inafiançável e imprescritível segundo o texto constitucional.

Na quarta sessão, o ministro Edson Fachin, relator da outra ação, concordou com Melo e defendeu a aplicação da Lei do Racismo até a edição de legislação específica pelo Congresso. Ele argumentou haver uma “gritante ofensa a um sentido mínimo de justiça” provocada pela “omissão legislativa”.

“Nenhuma instituição pode deixar de cumprir integralmente a Constituição, que não autoriza tolerar o sofrimento que a discriminação impõe”, disse Fachin em seu voto.

Os votos dos relatores foram acompanhados pelos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Moraes disse que o Congresso sempre ofereceu proteção pela lei penal a grupos sociais vulneráveis, como crianças e adolescentes, idosos, portadores de deficiência, mulheres e consumidores.

“No entanto, apesar de dezenas de projetos de lei, só a discriminação homofóbica e transfóbica permanece sem nenhum tipo de aprovação. O único caso em que o próprio Congresso não seguiu o seu padrão”, afirmou o ministro. Moraes concordou que o STF não deve fixar um prazo para que o Congresso edite uma lei sobre o tema.

Barroso também foi favorável à criminalização. “Se o Congresso atuou, a sua vontade deve prevalecer. Se o Congresso não atuou, é legítimo que o Supremo atue para fazer valer o que está previsto na Constituição”, afirmou Barroso.

O ministro disse ainda que que fixaria um prazo para a atuação do Congresso em circunstâncias normais, mas que, diante de manifestações da Câmara e do Senado de que há projetos de lei sobre o tema sendo apreciados, optou por não fazê-lo.

Após o voto de Barroso, Toffoli suspendeu o julgamento em 21 de fevereiro, sob o argumento de que a votação havia se prolongado além do previsto e que seria necessário reorganizar a pauta do plenário para dar continuidade a ela.

Como foi a retomada do julgamento

Quando o julgamento foi retomado, Toffoli anunciou que concederia a palavra à ministra Rosa Weber para que proferisse seu voto, quando Celso de Mello o interrompeu para anunciar ter recebido um comunicado do Senado.

O documento informava sobre a aprovação pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Casa de um substitutivo do projeto de lei 672-19, do senador Weverton Rocha (PDT-MA), que altera a Lei de Racismo e torna crime o preconceito contra orientação sexual e identidade de gênero. O comunicado informava ainda ter sido aprovado o projeto 191-17, do senador Jorge Viana (PT-AC), que altera a Lei Maria da Penha para estender sua proteção a mulheres transexuais.

“O Senado Federal vem à presença de Vossa Excelência informar os aludidos fatos supervenientes, que demonstram que a matéria objeto de apreciação desse Corte está sendo apreciada pelo Senado Federal, no exercício de sua competência constitucional típica de aprimorar a legislação penal existente”, dizia o documento.

No dia anterior, a presidente da CCJ, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), afirmou que pediria ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para solicitar a Toffoli que o STF aguardasse a análise destes projetos pelo plenário da Casa.

Ainda que o comunicado do Senado não pedisse formalmente a suspensão do julgamento, Mello anunciou ter considerações a fazer. Ele defendeu que, mesmo que projetos sobre o tema tramitem no Congresso, eles ainda não foram aprovados e transformados em lei.

Portanto, disse, persiste a omissão do Legislativo em tratar da questão. “Continua existindo a mora pela inércia deliberante do Legislativo”, afirmou o ministro, que argumentou ainda que a apresentação de um projeto de lei não garante sua aprovação por ambas as Casas.

“Mesmo que eventualmente aprovado pela Câmara ou pelo Senado, ainda assim precisa ser aprovado pela outra Casa e terá de ser submetido ao presidente, e nada garante que o presidente o sancionará e o converterá em lei.”

Sua posição foi acompanhada por Fachin, relator da outra ação que levou o STF a debater o tema. Toffoli disse então que gostaria de fazer uma sugestão – sem esclarecer a princípio qual seria, para só depois afirmar que pediria para que o julgamento fosse adiado. O ministro destacou que os votos já proferidos tinham levado o Congresso a se mobilizar.

Mas o presidente do STF foi novamente interrompido por Mello, que ressaltou que os votos dos ministros levaram a pedidos de impeachment contra ele e seus colegas. “É uma postura intolerante. Uma denúncia feita simplesmente por exercermos nosso dever constitucional”, disse o ministro.

Diante disso, o presidente do STF disse ter desistido de fazer sua sugestão e deu início à votação pelo plenário sobre a suspensão do julgamento. Com exceção de Marco Aurélio Mello e Toffoli, os outros sete ministros acompanharam a posição de Mello e Fachin contra o adiamento.

‘A homofobia se generalizou’

Após um intervalo, a ministra Rosa Weber reiniciou a sessão com seu voto. Ela logo anunciou que acompanharia os votos dos relatores e defendeu que o “descumprimento do comando constitucional pelo Legislativo transcorridas três décadas abre a via da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão”.

“A mora do Legislativo em cumprir essa determinação está devidamente demonstrada, e há farta jurisprudência desta Casa de que a existência de projetos de lei em tramitação não afasta a mora inconstitucional que só se dá com conclusão do processo legislativo”, afirmou Weber.

Em seguida, ela defendeu que o STF já havia anteriormente entendido que o conceito de raça tem um sentido jurídico mais amplo, que vai além de características biológicas e compreende também características sociais e, portanto, pode ser aplicado ao preconceito contra LGBTs.

E concluiu dizendo que a Lei de Racismo deve ser aplicada a estes casos “enquanto persistir a mora legislativa”.

Em seguida, foi a vez do ministro Luiz Fux proferir seu voto. Ele começou explicando o que entende por crimes de homofobia e disse que eles “não são um fato isolado do cotidiano”. “A homofobia se generalizou”, afirmou.

Prosseguiu reconhecendo a demora do Legislativo em tratar do assunto – “Os projetos não andam” – e refutou o argumento de que o STF estaria usurpando uma competência do Legislativo ao equiparar a homotransfobia aos crimes de racismo já previstos em lei.

“O STF não está violando o princípio da reserva legal nem criando uma figura penal. Está fazendo uma interpretação da legislação infraconstitucional que trata do racismo”, afirmou o ministro.

Ele encerrou comentando sobre os efeitos que a medida pode ter, ao dizer que a criminalização das condutas homofóbicas “aumenta a autoestima destas minorias e lhes conforta, dá sensação de pertencimento à sociedade”.

“As ações afirmativas em relação aos afrodescendentes não só criminalizaram o preconceito, mas esta legitimidade constitucional representou um fato gerador que levou a uma abertura do mercado, de vagas em universidades, da vida em sociedade para este grupo. Assim também deve ser em relação aos integrantes da comunidade LGBT.”

Como é a lei hoje

A homofobia e a transfobia não estão na legislação penal brasileira, ao contrário de outros tipos de preconceito, como por cor, raça, religião e procedência nacional.

Uma das principais reivindicações de militantes LGBT no país, ela chegou à Corte por meio de duas ações, movidas pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e o Partido Popular Socialista (PPS), em 2012 e 2013, respectivamente.

Elas argumentam que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 determina que qualquer “discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” seja punida criminalmente. Ao não legislar sobre a homofobia e a transfobia, deputados e senadores estariam se omitindo inconstitucionalmente, por “pura e simples má vontade institucional”.

As ações pedem também que o STF fixe um prazo para que seja criada a lei e que, caso ele não seja cumprido ou se um prazo seja considerado desnecessário pela Corte, ela própria regulamente temporariamente a questão até uma decisão do Congresso e criminalize esse preconceito.

“O direito penal existe para defender a sociedade e também minorias e grupos sociais vulneráveis”, diz o advogado Paulo Iotti, doutor de Direito Constitucional e representante do PPS e da ABGLT nas ações. “Por isso, criminaliza o racismo e coíbe a violência contra a mulher, mas o Código Penal não é suficiente hoje para proteger a população LGBT.”

Iotti argumenta que o STF considerou o antissemitismo um tipo de racismo, definido como “toda ideologia que prega a superioridade/inferioridade de um grupo relativamente a outro” em um julgamento de 2003, e pede que o mesmo agora seja aplicado à homofobia e à transfobia.

“Queremos igual proteção penal. Se você criminaliza alguns tipos de opressão e não outras, passa uma ideia sinistra de que são menos relevantes. Não se pode hierarquizar opressões.”

24/05/2019

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