O segundo assassinato de Delmiro

Cem anos após a morte do industrial Delmiro Gouveia, seu legado corre risco de desaparecer, mas há que resista e mantenha viva a lembrança de seus feitos

Cerca de 300 km separam a Tribuna Independente da cidade de Delmiro Gouveia, no alto Sertão alagoano, antes chamada Pedra. Ao longo do trajeto é possível ver a paisagem mudar, da Zona da Mata com sua estrada sinuosa à vegetação de caatinga e estrada em linha reta. O “chão que não acaba mais” despertou a sensação de volta ao tempo com a missão da pauta a ser apurada. E, ao contrário da caricatura que se faz da região, o destino é um lugar completamente urbanizado. Há um século, o autor do mais ousado projeto modernizador no Nordeste foi assassinado. Delmiro Gouveia mal desfrutou das proporções inimagináveis que seu império tomou. Neste 2017, ele “morreu” mais uma vez.

Usina de Angiquinho, construída por Delmiro Gouveia, foi fechada para visitação após corte de recursos do governo Temer (Foto: Carlos Amaral)

Pedra sobre pedra: O fim da fábrica de sonhos

Emblemático. No ano do centenário da morte daquele considerado o desbravador do Sertão, ‘morrem’ também suas mais lembradas criações – a Fábrica da Pedra e a usina de Angiquinho –, obras que se confundem com o criador: Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, que hoje batiza a cidade originária do povoado Pedra.

Lembrado como um empreendedor atrevido, visionário e excêntrico, Gouveia protagonizou a saga empresarial de construção da primeira hidrelétrica no semiárido brasileiro, aproveitando as águas do São Francisco. A hidrelétrica gerou energia que movimentou os teares da primeira fábrica de linhas de coser do País, produzidas por operários que receberam benefícios inimagináveis para a época, como pagamento semanal, educação para os filhos, assistência médica e moradia.

Fábrica da Pedra fomentou o sonho de um Sertão desenvolvido e industrial; abaixo como ela era no início do século 20, acima alguns anos antes de fechar (Fotos: Acervo Adair Nunes)

A mola propulsora da engrenagem do desenvolvimento na região – o Complexo de Angiquinho, que abriga um cenário paradisíaco e onde estão guardadas relíquias do tempo do desbravador –, está fechada há seis meses à visitação pública, por determinação do Governo Temer. Um funcionário da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), que pediu para não se identificar, revelou que a empresa decidiu fechar o acesso à Angiquinho por causa do corte de recursos para manutenção do local histórico. Mesmo assim a Tribuna conseguiu ter acesso ao local.

Tombada em 2006 como patrimônio nacional, Angiquinho é ponto obrigatório para se entender o legado de Gouveia. O local foi transformado em museu, inclusive possui o maior acervo sobre o cangaço. Contudo, seu fechamento põe em risco a conservação de todo o material lá guardado.

Sobre a Fábrica da Pedra, a Tribuna testemunhou, com exclusividade, o canto dos cisnes ao ouvir o lamento de João Gomes de Lima, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Fiação e Tecelagem (STIFT) de Delmiro Gouveia, que representa os cerca de 400 trabalhadores que ainda restavam na linha de produção: “Fechar a Fábrica da Pedra é assassinar Delmiro duas vezes”.

“Esse parque de fiação e tecelagem criado por Delmiro é a verdadeira história da cidade. É um patrimônio histórico, social e econômico dela. É o fim, se nada for feito rápido”, completa.

João Lima considera o fechamento da fábrica como novo assassinato de Delmiro (Foto: Carlos Amaral)

A fábrica não funciona desde abril porque o grupo Carlos Lyra sentenciou inviável a continuação da empresa por causa de dívidas trabalhistas e outros passivos. À reportagem, a assessoria de comunicação do grupo se limitou a dizer que lamenta o desfecho da empresa e que tudo que é devido aos trabalhadores será pago.

Nos tempos de Delmiro, a empresa chegou a operar com mais de dois mil trabalhadores e sustentar cerca de quatro mil famílias indiretamente.

Através de um preposto, todas as máquinas estão sendo vendidas. O fato foi relatado pelo prefeito da cidade, Padre Eraldo Cordeiro. “Recebi os representantes da fábrica que me confirmaram a venda dos equipamentos”.

O APITO SILENCIA…

Com olhos marejados, o prefeito Padre Eraldo se uniu ao lamento dos trabalhadores. “A gente tentou de tudo para que as máquinas não fossem vendidas. Assumir a prefeitura com a fábrica fechando e que é a alma do nosso município é uma dor. O Delmiro da Fábrica da Pedra e o da cidade é a mesma coisa”, lamenta.

Padre Eraldo chorou ao lembrar do vigor da Fábrica da Pedra em Delmiro Gouveia (Foto: Carlos Amaral)

O prefeito lembra do tempo de menino, quando ainda residia em Água Branca.

“Eu chegava aqui menino, com minha mãe, e nossa alegria era ouvir o apito da fábrica e era aquele ‘enxame’ de gente. Parecia uma cidade de filmes americanos. Quando não se falava em carteira assinada, aqui eram cerca de quatro mil trabalhadores nesta condição”, lembra.

José Souza Irmão, conhecido como Zeca Queiroz, dedicou 26 dos seus 73 anos de vida à Fábrica da Pedra. É também um dos mais ácidos críticos do fechamento do patrimônio que chama de a “alma de Delmiro”. Para Zeca, o episódio se caracteriza “pela tentativa capitalista de sufragar a história da fábrica”. E toca num ponto até então não mencionado pelos que protestam como ele por causa de seu fechamento. A especulação imobiliária de que o espaço físico de onde se situava a linha de produção estaria à venda. “É humanamente impossível se vender o prédio centenário e que não se permita que tal coisa aconteça, até porque o local não tem valor imobiliário”, atesta Zeca.

TEMPOS SÃO OUTROS

Mesmo tendo importância histórica sem precedentes para a região, a Fábrica da Pedra já não tinha mais o peso econômico de outrora. Segundo o economista Cícero Péricles, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a cidade de Delmiro Gouveia é um centro de comércio e serviços para a região do alto Sertão.

“Delmiro Gouveia tem 13.600 famílias. Dessas, 6.800 recebem Bolsa Família. Fora a previdência, com uma fatia grande. Então, o município tem esses dois elementos como principais fontes de renda. Mesmo com a fábrica, a cidade não perdeu a característica de município pobre, sertanejo. Mas é mais dinâmico e menos pobre que seus vizinhos, como Pariconha ou Olho d’Água do Casado e até virou polo comercial da região com o setor de serviços e ‘esmagou’ Água Branca, por exemplo. Sua influência vai até Mata Grande e Piranhas”, explica o economista.

Porém, ressalta que Delmiro Gouveia tem as atuais características devido ao que foi construído pelo homem que hoje batiza a cidade.

“Há uma migração dos municípios vizinhos para consumir os serviços que Delmiro Gouveia oferece. Isso é reflexo da fábrica, mas em sua origem, no início do século 20. Desde décadas que a fábrica não é mais competitiva pelo produto que faz e pela logística que não é eficiente. Por isso quebrou algumas vezes ao longo do tempo”, explica, ao ressaltar que “diferentemente das fábricas Coteminas – que desenhou produtos típicos para exportação – em Delmiro não se construíram produtos para atender à população mais pobre nem à exportação. Ficou no meio termo e acabou esmagada pela concorrência do Sul e Sudeste e da estrangeira”, diz Cícero Péricles.

História começa a ganhar vida no cemitério

A atmosfera para quem põe os pés na cidade outrora chamada “Pedra” é diferente. Exala história por todos os lados. Imagine então todo esse clima no centenário de morte de seu desbravador.

Adair Nunes, professor e historiador, é o cicerone perfeito para contar alguns fatos e “causos” que ouviu e estudou ao longo de sua vida sobre Delmiro Gouveia.

Por incrível e mais emblemático que possa parecer, Adair começa a relatar à reportagem a vida de Delmiro Gouveia justamente no lugar mais improvável: o cemitério.

Lá onde está sepultado o lendário Delmiro Gouveia foi onde se desenvolveu boa parte do que a Tribuna colheu para contar sobre os feitos do desbravador, nascido no século XIX, na fazenda Boa Vista, em Ipu, diocese de Sobral, a 291 km de Fortaleza-CE.

“Foi Delmiro o primeiro empresário que utilizou a energia hidráulica, usando a queda d’água da cachoeira de Paulo Afonso, para colocar em funcionamento as máquinas de sua indústria – a Companhia Agro-Fabril Mercantil”, relata Adair.

Historiador Adair Nunes diante do túmulo onde está sepultado o desbravador do Sertão nordestino, no município de Delmiro Gouveia (Foto: Carlos Amaral)

Esse feito histórico ocorreu no dia 26 de janeiro de 1913. No ano seguinte, Gouveia inaugurou sua fábrica de linhas que, com as marcas Estrela (nacional) e Barrilejo (estrangeira), passou a dominar o mercado brasileiro, conseguindo também forte atuação nas praças argentina, chilena e peruana, desbancando os produtos similares estrangeiros, a principal delas a empresa escocesa Machine Cottons, com a qual pairam ainda hoje boa parte das suspeitas na trama para eliminar do caminho o desbravador dos sertões nordestinos.

“Vocês podem notar que aqui no cemitério, bem defronte de onde está o mausoléu do Delmiro Gouveia, tem uma estrela na frente do campo santo”, aponta o historiador.

Mausoléu, aliás, que fica quase no centro do terreno da parte antiga do cemitério. Delmiro Gouveia foi o centro das coisas na região até depois de morto. “A bem da verdade, toda a cidade circunda os feitos do industrial”, afirma o historiador.

Em 1914, o empresário iniciou a construção de estradas para a circulação de riquezas até a então Vila da Pedra, findando por abrir 520 km de vias carroçáveis que em linha reta iam até Quebrangulo, mas com ramificações para Mata Grande, Jatobá e Bom Conselho, em Pernambuco. Com isso, também foi o pioneiro na introdução do automóvel no Sertão.

A verdade é que aquela Pedra de ontem – a Delmiro Gouveia de hoje – era um lugarejo cercado por grandes rochas, com escassas casinhas de taipa cobertas com folhas de sapé, paredes de pau a pique e chão de terra batida, construídas nas proximidades de uma pequena estação ferroviária. A água vinha de longe e só chegava ao local uma vez por semana pelo trem. O banho era um luxo reservado a datas especiais e, mesmo assim, quando sobrava água. As pessoas viviam descalças e usavam as mãos no lugar de talheres.

Foi nessa “beira do fim do mundo” que o atrevido e excêntrico empreendedor Delmiro Gouveia protagonizou a saga empresarial de construção da primeira hidrelétrica no semiárido brasileiro.

Mas até chegar à condição de industrial de sucesso, Gouveia enfrentou muitos desafios e inimigos. “Delmiro era um encrenqueiro”, comenta Adair.

A história rumo ao sucesso começa com a mudança de sua família do Ceará, em 1868, para Pernambuco. De bilheteiro na estação do trem urbano de Olinda, passando por despachante de barcaças, Gouveia começa, aos 20 anos, a se interessar pela compra de peles de cabras e ovelhas para exportação, servindo de intermediário entre produtores de couro e comerciantes estrangeiros.

Em 1886, passa a trabalhar por conta própria como negociante de couros, vindo a tornar-se conhecido, 11 anos depois, como o “Rei das Peles”, acabando por assumir, em 1897, a presidência da Associação Comercial de Pernambuco. Dois anos depois, constrói um mercado modelo sem similar no Brasil.

O projeto, denominado Mercado Coelho Cintra, inaugurado em 7 de setembro de 1899, foi o primeiro do Recife a utilizar luz elétrica e incluía carrossel, retreta, teatro, regatas, hotel, bares e velódromo. Com preços baixos, incomodou a concorrência, gerando inimigos poderosos, como o prefeito Esmeraldino Bandeira e o todo poderoso da política pernambucana, o presidente do Senado Federal e vice-presidente da República, Francisco de Assis Rosa e Silva. No ano seguinte, seus inimigos políticos incendeiam o complexo e Gouveia é jurado de morte pelos oligarcas da família Rosa e Silva.

Na madrugada de 2 de janeiro de 1900, o alarme soou na Companhia de Bombeiros de Recife. Derby estava em chamas. Sob o pretexto de investigar a origem do incêndio, vários colaboradores de Delmiro foram detidos. O próprio empresário foi preso por uma tropa numerosa, com direito a parada nas principais ruas do Centro de Recife, até a chegada à prisão. Em protesto, naquele dia, os bancos e o comércio não funcionaram. Mas a bancarrota foi inevitável.

No ano seguinte, 1901, perseguido, foge para a Europa.

Coronel Luna recebeu Delmiro em sua Fazenda Cobra, na cidade de Água Branca (Foto: Acervo Adair Nunes)

Em 1902, separado da primeira esposa, Anunciada Cândida de Melo Falcão, a Iaiá, o empresário rapta e volta para o Brasil com a adolescente Carmela Eulina do Amaral Gusmão, filha do governador de Pernambuco do período 1899-1900, o desembargador Sigismundo Antônio Gonçalves, um “rosista” de destaque, e se estabelece em Alagoas a convite do governador Euclides Malta. Ele teve três filhos com Eulina.

Delmiro chega ao Estado e se hospeda na Fazenda Cobra, em Água Branca e de propriedade do coronel Luna. Contudo, seu poderio financeiro não era o mesmo dos tempos de Recife. Delmiro volta a trabalhar com peles e refaz sua fortuna.

“Até o Virgulino [Lampião], antes de virar cangaceiro, trabalhou para Delmiro vendendo e comprando peles”, comenta Adair.

Curtume que pertenceu a Delmiro Gouveia segue em atividade na cidade que leva seu nome (Foto: Carlos Amaral)

O desempenho de Delmiro Gouveia no mercado de peles em Alagoas fez a comercialização desse produto saltar de 3.278 quilos em 1903 para 1.151.846 quilos em 1915.

Queda d’água impulsiona império

Após voltar a fazer fortuna vendendo peles, Delmiro Gouveia adquire terras nas proximidades da cachoeira de Paulo Afonso, constrói uma indústria de transformação de algodão, abundante na região à época, e instala uma hidrelétrica para aproveitar a força da queda d’água: Angiquinho e a Fábrica da Pedra, então chamada de Companhia Agro-Fabril Mercantil.

Em 1910 o governador Euclides Malta lhe concede isenção de impostos para a fabricação de linhas e autoriza a captação das águas do São Francisco para pôr a hidrelétrica para funcionar. Delmiro iniciou no Sertão um polo industrial urbano e moderno. Para os operários, ele construiu uma vila e lhes garantiu estudo e treinamento para a fabricação de suas linhas de coser.

Toda a vila era abastecida com água, sistema de esgoto e luz elétrica, inclusive pública – sendo a primeira do Nordeste – em 1913.

Beneficiada pela I Guerra Mundial, a produção de Delmiro alçou mercados internacionais. “Ele chegou a vender linhas até no Canadá”, diz Aldair Nunes.

A fábrica foi inaugurada em 1914 e chegou a ter uma produção de 214 mil carreteis de linha de coser, para crochê, bordar, cordão branco e em cores, e malharia.

Fábrica da Pedra e seus operários quando Delmiro ainda estava vivo, em 1916; e a Rua 13 de Maio, da Vila Operária construída pelo industrial cujo nome veio a batizar a cidade sertaneja (Fotos: Acervo Adair Nunes)

Essa expansão atraiu a atenção da empresa europeia Machine Cotton que passou a concorrer com a Companhia Agro-Fabril Mercantil. Ela chegou a quebrar três fábricas nacionais com guerra de preços. Apenas a de Delmiro Gouveia resistiu.

ANGIQUINHO

Para construir Angiquinho, Delmiro foi buscar o engenheiro italiano Luigi Borella e importou máquinas hidráulicas da Alemanha e da Suíça.

Também foram contratados engenheiros e técnicos franceses para montar a usina. Por ter sua casa de máquinas encravada no paredão dos cânions do São Francisco, chegou-se a duvidar de seu sucesso.

Os engenheiros e técnicos tentaram instalá-la em outro local, mas foram obrigados por Delmiro – sob a mira de uma arma de fogo – a descer em elevadores improvisados e concluir a obra.

O guardião da memória resiste

O nome do bairro em que vive o estudante de História Clécio Lopes da Silva chama atenção: Desvio. Mas quis o destino que o então menino não se perdesse e encontrasse o caminho de uma certa linha de trem, numa velha estação que abriga um museu e que passaria a ser seu cantinho.

Quis esse mesmo destino que Clécio se tornasse o guardião da História de Delmiro Gouveia. Ainda criança, o ex-gari da prefeitura um dia adentrou o Museu Regional Delmiro Gouveia e seus olhos brilharam.

Aquelas fotos mexeram com o imaginário do menino. Resultado: trabalhava no ofício diário limpando as ruas da cidade e, nas horas vagas do emprego, se deleitava com aquelas fotos em preto e branco que ilustravam a vida e a saga do desbravador do Sertão.

“Em verdade, a primeira vez que entrei aqui no museu eu tinha cinco anos trazido por meu pai para assistir cinema”, relembra o agora homem sertanejo de sorriso fácil e papo descontraído, atualmente com 32 anos.

Clécio, no Museu Regional de Delmiro, local onde entrou criança para assistir cinema e se tornou funcionário para cuidar do legado deixado pelo lendário empreendedor do Sertão (Foto: Carlos Amaral)

Durante sete anos, Clécio trabalhou como gari, mas alimentou um desejo. “Queria fazer o curso de História para entender o legado do Delmiro Gouveia. E mesmo antes de ingressar na faculdade, eu comecei a estudá-lo. Vi que Delmiro começou a trabalhar muito jovem e eu, por também ser jovem, me espelhei nele”, relembra Clécio.

Mas foi preciso que o futuro guardião do museu trilhasse o caminho da dificuldade: “Tive que fazer quatro Enens [Exame Nacional do Ensino Médio] para conseguir uma vaga no curso de História da Universidade Federal de Alagoas, no campus Sertão. Valeu a pena!”, regozija-se.

Mas o homem que realizou o sonho de fazer História e trabalhar no museu que lhe atraiu na infância confessa um receio que o incomoda.

Do Sertão Agrário para o urbano

O historiador Edvaldo Nascimento é um dos muitos apaixonados e estudiosos sobre os feitos de Delmiro Gouveia e seus desdobramentos. O professor Edvaldo, como é conhecido na cidade de Delmiro Gouveia, atualmente é doutorando em Educação tendo como objeto de estudo a Vila Operária da Fábrica da Pedra e o processo educacional implantado por Delmiro Gouveia.

De Portugal, onde fica até o final deste ano, Edvaldo conversou com a Tribuna Independente.

Tribuna Independente – Seu recente livro – Delmiro Gouveia e a Educação na Pedra – trata da educação na vila operária criada por Delmiro Gouveia. Em sua avaliação, até que ponto aquela forma de se relacionar com os trabalhadores da fábrica influenciavam no desenvolvimento da cidade?

Edvaldo Nascimento – No meu livro, abordo os processos educacional escolar e não escolar que foram introduzidos por Delmiro Gouveia. Sejam as escolas que ele abriu no Núcleo Fabril da Pedra, quando essas eram escassas até nos centros urbanos ou a imposição de momos e costumes aos sertanejos como: proibir bebidas alcoólicas, jogos de azar, as senhoras usarem chales, os namoros não autorizados, o bando diário, entre outros. Delmiro Gouveia trouxe ao Sertão uma mudança muito significativa, que é a mudança do meio rural agrário para o urbano industrial e tudo que isso representa. Por mais de um século, o Sertão e o sertanejo vivenciaram esse processo iniciado no São Francisco por Delmiro Gouveia.

Delmiro Gouveia em estúdio ao ser fotografado por Musso no Rio de Janeiro (Foto: Acervo Edvaldo Nascimento)

Tribuna Independente – A forma como Delmiro tratou de ampliar seus negócios, ao tempo em que se preocupou com o bem-estar dos operários – mesmo sob sua tutela rígida – seria hoje algo difícil de encontrar por aí?

Edvaldo Nascimento – O Brasil vai vivenciar o seu ciclo de desenvolvimento capitalista industrial apenas a partir de 1930. Até então desde a colonização, Império e Primeira República vivemos com a nossa economia predominantemente de bases agrárias e de herança perversa para a maioria da população, principalmente no Sertão.

Delmiro Gouveia traz o ciclo mais “avançado” do capitalismo na época para o Sertão. Na Pedra, a jornada de trabalho era de oito horas diárias, e isso só foi introduzido na legislação brasileira na década de 1930. Penso que o capitalismo é responsável por essa estrutura de desigualdade que vivemos, mas mesmo o capitalismo tem suas várias faces. Realmente estamos vivendo um momento de retrocesso, pois a face mais perversa do capitalismo – o neoliberalismo está impondo aos trabalhadores aquilo que o Sertão já tinha superado nas primeiras décadas do século XX.

Tribuna Independente – Cem anos após sua morte, a Fábrica da Pedra fechou suas portas. O presidente do sindicato dos tecelões classificou isso como o “segundo assassinato de Delmiro”. Em sua avaliação, a dimensão é essa mesma?

Edvaldo Nascimento – A Fábrica da Pedra quando inaugurada em 1914, o mundo vivia a Primeira Guerra Mundial. Delmiro aproveitou-se que as mercadorias importadas não chegavam porque com os países em guerra os navios não traziam mercadorias para o Brasil e consolidou a linha Estrela produzida pela Fábrica da Pedra no mercado brasileiro e sul-americano. Mas, com sua morte em 1917, os sócios e depois os herdeiros viveram implacáveis ataques da indústria Machine Cottons, principal concorrente da Linha Estrela. Em 1927 a fábrica foi vendida para o grupo pernambucano Menezes Irmãos & Cia. Em 1986 esse grupo vende para o grupo mineiro Cataguases Leopoldina que, em 1992, vende ao grupo alagoano Carlos Lyra. Ao longo de mais de um século de atividades, a fábrica passou por muitas crises, mas resistiu a todas elas. Eu entendo que a indústria têxtil brasileira vive um momento, na verdade vem vivendo há algumas décadas, de muitas dificuldades frente ao mercado internacional. No entanto, penso também que esta indústria tinha não só um papel econômico, mas histórico, cultural e social. É lamentável o seu fechamento porque ela representava a resistência do Sertão e do sertanejo.

Tribuna Independente – Em sua avaliação, qual o maior legado que Delmiro Gouveia deixou para a região, para a cidade que hoje tem seu nome?

Edvaldo Nascimento – O Sertão e o sertanejo durante séculos foram sinônimos de barbárie, incivilidade, onde o homem e o meio eram representantes do atraso frente à modernidade europeia. Ainda hoje se vende uma imagem estereotipada do Sertão e do sertanejo. O Núcleo Fabril da Pedra passou a ser visitado por jornalistas, intelectuais, lideranças políticas e religiosas que queriam ver a obra “civilizatória” que Delmiro Gouveia estava realizando com o sertanejo. Isso foi importante porque os primeiros jornalistas que visitaram escreveram sobre a Pedra: Assis Chateaubriand, Plínio Cavalcanti e Oliveira Lima passaram a mostrar o sertanejo de Pedra como contraponto ao sertanejo que a imprensa, os intelectuais falavam. Ou seja, Pedra foi utilizada para desconstruir a concepção que predominava do sertanejo como incivilizado, inculto, violento, incapaz, etc. Esse é para mim o grande legado.

Tribuna Independente – Qual a sua avaliação da forma como os delmirenses se relacionam com Delmiro Gouveia, há a consciência de seus feitos e importância para, não só o Sertão ou Alagoas, mas para o País?

Edvaldo Nascimento – Quando da inauguração de uma usina de Paulo Afonso em 1954, o presidente da República Café Filho não citou o nome de Delmiro Gouveia na solenidade. A filha de Delmiro, Maria Augusta Gouveia, deu uma entrevista indignada, dizendo: Meu pai foi vítima em vida do truste internacional, e continua depois de morto sendo vitima do truste internacional do silêncio. Eu penso que a partir de 1997, quando passou a ser realizado um movimento de resgate para buscar conhecer e divulgar a História do povo do Sertão, Delmiro Gouveia teve sua História e memória de certa forma recuperadas. Claro que muita coisa se perdeu, mas hoje Delmiro Gouveia é referência quando se pensa e se deseja falar sobre o Sertão, não só de Alagoas, mas os sertões do Brasil. Hoje, temos teses, dissertações, pesquisas acadêmicas sobre as várias faces do Delmiro. Nas artes, Delmiro está presente na música de Luiz Gonzaga, no cinema, e na literatura foi citado por Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Théo Brandão, Pedro Motta Lima, Mário de Andrade, Assis Chateaubriand, entre outros.

Edvaldo Nascimento durante o lançamento do livro “Delmiro Gouveia e a Educação na Pedra” (Foto: Acervo pessoal)

A sensibilidade de um repórter e uma justiça tardia

A velha máquina de escrever – objeto já em extinção em tempos dos atuais aparelhos de última geração – ainda é sua companheira inseparável. Acomodado numa cadeira em sua bela casa, num aprazível loteamento de classe média alta, no bairro da Gruta de Lourdes, em Maceió, o desembargador aposentado Antônio Sapucaia recebeu a Tribuna Independente para contar o que testemunhou sobre o rumoroso caso de condenação pelo assassinato de Delmiro Gouveia, em 10 de outubro de 1917, principalmente na reviravolta do caso, que apontou três inocentes.

Antes das perguntas sobre sua participação no processo criminal do desbravador do Sertão, Sapucaia gentilmente pede ao repórter que dê uma lida no briefing preparado para o preâmbulo da entrevista. O material, claro, foi todo escrito com o auxílio da velha companheira máquina. Nada de computador ou coisa semelhante dos tempos modernos.

Sapucaia, na condição de repórter e estudante de Direito em 1968, quando trabalhava no matutino Gazeta de Alagoas, foi o primeiro repórter (e talvez o único) a entrevistar um dos condenados pelo assassinato de Delmiro Gouveia, Róseo Moraes do Nascimento. Outro acusado, e também inocente no caso, era José Ignácio Pia. Um terceiro, chamado Antônio Félix do Nascimento, a quem a polícia também usou como bode expiatório, foi morto ainda antes do primeiro julgamento.

“Tive a oportunidade de entrevistar o Róseo na cadeia. A matéria teve repercussão nacional, publicada com igual espaço em veículos como o Jornal do Commercio, de Pernambuco, e em quatro páginas da revista O Cruzeiro, então semanário de maior circulação nacional”, lembra.

Antônio Sapucaia lembra de sua reportagem sobre a inocência dos condenados pela morte de Delmiro Gouveia (Foto: Sandro Lima)

Na pergunta sobre o que escutou e viu in loco do acusado de assassinar o personagem do polêmico caso, uma convicção: “Logo nos primeiros contatos com o entrevistado, nasceu-me a certeza de que ele era realmente inocente”, crava o desembargador aposentado.

Detalhe: Róseo Moraes havia até então reiterado várias vezes de que teria participado da trama que abreviou a vida de Delmiro.

“Senti a alma daquele homem que havia assumido a culpa porque ele me fez ver que havia sofrido inomináveis torturas para confessar o crime, ato esse comprovado depois, inclusive nos autos. Para mim, ficou claro que as autoridades queriam a qualquer custo os culpados, ainda que fossem inocentes, porque ignoraram completamente seus apelos e dos outros acusados, provados também depois que eram igualmente inocentes”, ratifica Sapucaia. “Parte deste erro do aparelho policial do Estado estava naturalmente ligada à imensa repercussão da morte de Delmiro para o País”, completa o desembargador.

O encarregado para investigar o caso pelo então governador de Alagoas, Batista Acyolli, foi o capitão da Polícia Militar Pedro Nolasco da Silva, que saiu de Maceió com 20 soldados. Ao chegar em Pedra – então nome da cidade de Delmiro Gouveia – o militar teria espancado inocentes para arrancar possíveis culpados pelo assassinato.

Sapucaia lembra que foi durante a entrevista que Róseo resolveu lutar para provar sua inocência.

“Foi ali que, pela primeira vez depois de muitos anos, Róseo falou em aceitar uma revisão criminal após uma sugestão nossa”, relembra o ex-desembargador. Passado mais ou menos um mês do marcante encontro entre o repórter e o condenado, Sapucaia conta que Róseo outorgou procuração para ele e para o advogado Antônio Aleixo de Albuquerque para ajuizar a ação.

“A bem da verdade, devo dizer que o Aleixo já era um conceituado criminalista, enquanto eu era um ‘pelanco’ de advogado, ainda nos cueiros da atividade”, brinca Sapucaia.

Mas em face de ter sido nomeado para o cargo de juiz de Direito em 1971, tornou-se impossível a Sapucaia legalmente continuar na causa. Róseo então deu plenos poderes ao advogado e bacharel em Direito Moacir Medeiros de Santana, que levou a bom termo a luta para provar a inocência dos condenados.

No dia 24 de maio de 1983, por maioria de votos, e através do Acórdão número 5.50/83, o Tribunal de Justiça de Alagoas deu ganho de causa aos então réus no processo de assassinato do coronel Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, em que Róseo Moraes do Nascimento e José Ignácio Pia foram condenados.

Mesmo o caso tendo sido reavaliado pelo Tribunal de Justiça em maio de 1983, seu acórdão só foi publicado no Diário Oficial em 1º de março de 1984. O relator do processo foi o desembargador José Agnaldo de Souza Araújo.

“[…] por maioria de votos, em julgar procedente a revisão para absolver ‘post mortem’ os réus – Róseo de Moraes Nascimento e José Ignácio Pia, conhecido por ‘Jacaré’, da imputação feita aos mesmos”, afirmou o relator em seu voto.

…O chalé do coronel Delmiro Gouveia era situado quase em frente à estação ferroviária da Pedra. À noite sempre ficava bem iluminado entre um roseiral que desprendia um perfume bastante agradável. Protegendo a casa, levantava-se uma cerca de arame farpado. Os fios eram separados um do outro mais ou menos dez centímetros para impedir a passagem dos cachorros. Os do coronel, inexplicavelmente, não estavam soltos naquela noite (…)

A rajada saiu de uma vez num estrondo medonho, na escuridão da noite. O apito da fábrica varava o espaço. As três balas atingiram o alvo e os cabras saíram agachados numa fuga apressada e estonteante. Tinham feito o serviço (…)

Trecho do livro O Ninho da Águia, Saga de Delmiro Gouveia, de Adalberon Cavalcante Lins

Na revisão do julgamento dos condenados, o Ministério Público deu parecer pela manutenção da primeira decisão judicial condenatória.

As provas colhidas para os autos eram robustas em face dos documentos colhidos. Sapucaia disse à Tribuna ainda que, por causa da prescrição, os familiares dos condenados não conseguiram êxito no processo para responsabilizar o Estado por ficarem tanto tempo presos desde 1917, época do assassinato de Delmiro.

Dessa forma, a Justiça reconhecia, somente após a revisão 66 anos depois do episódio, não haver mais dúvidas de que os autores intelectuais do crime foram o coronel José Gomes de Sá e José Rodrigues, de Piranhas, enquanto os autores materiais foram Herculano Soares Vilela, que residia na Serra dos Cavalos, em Água Branca, auxiliado por seu cunhado Luiz dos Angicos, e Manoel Vaqueiro, esses três reconhecidos pela Justiça como os verdadeiros pistoleiros.

A reportagem conseguiu encontrar uma das netas de Róseo de Moraes. Residente no bairro de Ponta Grossa, em Maceió, ela não quis conceder entrevista. “Tenho pavor desse assunto”, resumiu.

Confissão de José Gomes de Sá retirada do acórdão da revisão do julgamento do caso Delmiro Gouveia publicado no Diário Oficial de 1º de março de 1984 (Imagens: Sandro Lima/reprodução)

O legado do homem em versos, imagens e sons

Delmiro deu a ideia…

Em 1913 foi inaugurada a Usina Hidrelétrica de Angiquinho, na margem alagoana da cachoeira de Paulo Afonso, no Rio São Francisco. Construída por Delmiro Gouveia, foi a partir dela que surgiu a ideia da construção da Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso.

Apolônio Aproveitou…

Apolônio Sales foi ministro da Agricultura de Getúlio Vargas entre 1942 e 1945. Foi dele a elaboração do anteprojeto que originou a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), após constatar a potencialidade de Angiquinho.

Getúlio fez o decreto…

A Chesf foi criada após decreto de Getúlio Vargas em 1944, mas sua deposição em 1945 atrasou a constituição da empresa.

E Dutra realizou…

Eurico Gaspar Dutra foi o presidente da República que construiu a Chesf de fato, mas ela viria a ser inaugurada pelo próximo presidente do país.

O presidente Café, a usina inaugurou…

Foi o presidente Café Filho quem inaugurou a Chesf em 15 de janeiro de 1955. Sua potência dava para abastecer de energia elétrica toda a região Nordeste.

Meu Paulo Afonso foi sonho que já se concretizou…

Paulo Afonso – Luiz Gonzaga / Zé Dantas

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Foto da usina de Angiquinho tirada pelo engenheiro italiano Luigi Borella (Acervo Edvaldo Nascimento)
Local onde Delmiro Gouveia foi assassinado, na época sua residência, localizado em frente à Fábrica da Pedra (Carlos Amaral)
Barragem do açude criado por Delmiro para abastecer de água a Fábrica da Pedra e a Vila Operária, no início do século 20 e atualmente (Acervo Adair Nunes e Carlos Amaral)
Delmiro Gouveia em seu velório (Acervo Adair Nunes)
Segunda parte de Angiquinho que nunca fora concluída (Carlos Amaral)

NA SÉTIMA ARTE

Também foi produzido, no final da década de 1970, um filme sobre a vida e obra de Delmiro Gouveia. Estrelado pelo ator Rubens de Falco, o vídeo está disponível na internet e pode ser assistido abaixo.

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Carlos Amaral e Wellington Santos / Tribuna Independente

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