MP do racionamento de energia pode provocar tarifaço e desabastecimento de água

O governo de Jair Bolsonaro (ex-PSL) quer mexer de forma atabalhoada na gestão dos reservatórios de usinas hidrelétricas que hoje estão sob controle da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). Para isso prepara a edição de uma Medida Provisória (MP) que cria a Câmara de Regras Operacionais Excepcionais para Usinas Hidrelétricas (Care), que terá poderes para estabelecer os limites de uso, armazenamento e vazão das usinas hidrelétricas.

A desculpa do governo é que é preciso dar poder ao Ministério de Minas e Energia (MME)para acelerar as decisões sobre a necessidade de aumentar, ou não, o nível de água das principais barragens, e evitar o racionamento de energia por causa da estiagem prolongada.

Para o ex-diretor-presidente da ANA, Vicente Andreu, que esteve no cargo de 2010 a 2018, a MP do racionamento como vem sendo chamada, é na verdade uma tentativa de esconder que o governo é o único responsável pelo risco energético que o país está ocorrendo.

Ele denuncia que os reservatórios da bacia do Rio Paraná foram esvaziados de setembro de 2020 a março de 2021, de maneira imprudente, e os responsáveis pelo setor elétrico nesse governo fabricam uma crise onde alguns ganham muito dinheiro, mas que agora perderam o controle dessa crise.

Segundo Andreu, o conteúdo da MP é um profundo retrocesso nas políticas de água de meio ambiente, podendo fixar regras e procedimentos que anulam para sempre as competências da ANA e do Ibama, e não apenas para essa crise. Anula ainda o papel dos comitês de bacias hidrográficas, os planos de recursos hídricos construídos com grande participação social ao longo de muitos anos.

“Agora vai ser um gabinete de ministros que vai enfiar goela abaixo medidas que lhe convierem, com medidas que acham que devem fazer, e vão transferir toda conta para ser paga exatamente por quem não tem a menor responsabilidade, ou seja população”, diz o ex-presidente da Agência Nacional de  Águas.

Engenheiros do sistema Eletrobras também são contrários à medida. Segundo eles, desde 2017 quando o governo de Michel Temer (MDB-SP) anunciou que privatizaria a estatal até os dias de hoje, a empresa, da qual a União é controladora, tem priorizado cortes de custos, despesas, aumento do caixa e distribuição de dividendos aos acionistas, não faz os investimentos necessários para outras formas de energia, que não sejam as de usinas térmicas, que encarecem a conta de luz e poluem o meio ambiente.

Mexer no nível  das barragens barragens dos reservatórios das hidrelétricas, que já se encontra bem abaixo do ideal, vai prejudicar o consumo de água tanto da população, como dos animais, da flora,da agricultura e, inclusive, de indústrias que utilizam largamente a água na composição de seus produtos, diz o engenheiro civil de Furnas, especialista em recursos hídricos e meio ambiente, Felipe Araújo.

Segundo ele, a ANA é a Agência que regula a utilização de águas para os seres humanos, animais e irrigação para a agricultura e indústrias, que, por sua vez, utilizam água no processo industrial. Dependendo da área de atuação as indústrias podem ou não devolver a água, de alguma forma tratada, de volta ao meio ambiente.

Já o Ibama é o órgão responsável pela restrição de vazão mínima. Por  exemplo, um trecho de rio precisa ter 10 m³ por segundo para promover a irrigação e abastecer de água a fauna e flora nas imediações das hidrelétricas. Com mais poder, o ministério das Minas e Energia pode decidir por uma vazão abaixo do mínimo, prejudicando toda a cadeia do meio ambiente. Por isso,  é que para o governo federal é importante impedir que tanto a ANA como o Ibama intervenham em suas decisões catastróficas para o meio ambiente.

“Se o governo quiser poderá baixar a vazão mínima, a chamada vazão ecológica para encher mais rápido os reservatórios das hidrelétricas. A gente não pode reduzir essa vazão, pois precisamos manter os corpos de águas doces de rios e lagos para a manutenção da fauna e da flora. Por sua vez, sem água, tanto a agricultura como as indústrias não terão como produzir”, avalia Felipe, que também é diretor da Associação dos Engenheiros de Furnas (Asef).

A população, além de enfrentar um possível desabastecimento, terá de consumir uma água mais suja, que precisará de um maior tratamento.

A água que vai entrar nas estações de tratamento será mais suja, muito inferior, precisando de utilização de material químico que retire produtos sólidos e solúveis. A água vai chegar pior para a população, com mais cloro e mais cheiro, dependendo da distância da moradia de uma estação

– Felipe Araújo

Já em dezembro de 2019, o engenheiro e diretor do Coletivo Nacional dos Urbanitários (CNE), Ikaro Chaves, alertava em reportagem sobre os perigos da privatização da Eletrobras, sobre os impactos no acesso e distribuição de água para a população, a agricultura e ao meio ambiente.

Segundo ele, a Eletrobras tem 47 usinas hidrelétricas responsáveis por 52% de toda a água armazenada no Brasil. 70% dessa água são utilizadas na irrigação da agricultura.

“Imagine tudo isso em mãos de uma empresa privada que só se interessa pelo lucro, alertou o engenheiro, ressaltando que os aumentos de preços serão em cadeia: “Lógico que o preço vai subir para a agricultura e será repassado para a população que vai pagar mais caro pelos alimentos que coloca à mesa”.

Além dos alimentos mais caros, o povo também terá de arcar com contas de luz mais altas e ainda vai sofrer com o desabastecimento, afirmava Ikaro, à época.

Uma usina hidrelétrica tem a “chave do rio”. Ela armazena água para que em época de seca tenha como transformar a água em energia. Mas, cada gota utilizada na transformação da água em energia é uma gota a menos para o abastecimento

– Ikaro Chaves

“Vai ter conflitos entre uma empresa, que ganha mais em período de seca com o aumento do preço da energia, a população e os agricultores que vão querer utilizar a água para consumo. Já numa empresa estatal, esse conflito é minimizado porque o abastecimento da população tem prioridade, mas uma empresa privada que visa o lucro, não vai se importar com a falta de água na torneira da população”, avaliou Ikaro.

O governo, em termos de meio ambiente, adota uma estratégia errada pois planeja utilizar mais usinas térmicas, movidas a gasolina e diesel, para evitar que a energia seja racionada, alerta Felipe Araújo.

“Do ponto de vista ambiental e econômico é prejudicial, porque o mercado mundial tem premiado países que emitem menos carbono e tem feito sanções aos que emitem mais, que é o caso do Brasil, se manter o plano de utilizar e construir mais usinas térmicas”, afirma o engenheiro de Furnas.

Governo já sabia que racionamento ocorreria

O governo Bolsonaro quer a todo custo evitar que haja apagões de energia e se diz preocupado com o impacto que o uso de termoelétricas causará nas contas de luz.  A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), já anunciou que vai mudar a bandeira tarifária para vermelha, a mais cara ao consumidor, por causa da forte estiagem que passa o país.

O discurso do governo responsabilizando a estiagem pelo possível racionamento e o aumento nas contas de luz não reflete a verdade, segundo o presidente da Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU), Paulo de Tarso, pois deixou de investir em alternativas menos poluidoras, como a energia eólica, além do que já havia sido avisado dos problemas que uma forte estiagem traria.

”O Brasil de tempos em tempos tem uma forte estiagem. O governo diz que esta é a maior estiagem dos últimos 91 anos, mas era previsível, já era sabido, mas, simplesmente tiraram o pé do acelerador e deixaram situação do jeito que está, e quem vai pagar pela energia mais cara, que é a térmica, é a sociedade ”, critica o presidente da CNU.

A estiagem atual ser considerada a pior dos últimos 91 anos, é posta em dúvida pelo ex-diretor presidente da ANA. Para Vicente Andreu, os dados apresentados não se justificam, mas se for verdade, o governo Bolsonaro  teve muito tempo para se preparar, e não o fez.

A crise não é hídrica , é de gestão do setor elétrico. Tirar a ANA e o Ibama das decisões é apenas mais um passo desse governo autoritário e negacionista. A pergunta que fica é sempre por que não fizeram isso antes?

– Vicente Andreu

De acordo com ele, a crise 2014/2015 foi muito mais abrangente do que agora, com impactos não só na bacia do Rio Paraná, mas também em outras bacias como São Francisco e Paraíba do Sul, que hoje estão preservadas justamente por uma intensa participação dos atingidos na construção das soluções.

Eletrobras tem lucro e poderia investir para evitar crise energética 

Os governos de Michel Temer ( MDB-SP) e de Bolsonaro são também acusados por Paulo de Tarso de prepararem a venda da Eletrobras e a proibir de investir, o que está causando problemas no fornecimento de energia mais barata à população.

“Nos últimos três anos a Eletrobras deu um lucro de R$ 30 bilhões, mas eles deixaram de investir como forma de preparar para a venda num momento de crise, para dizer que a estatal não funciona e é preciso vender”, afirma o presidente da CNU.

A relação do valor da dívida da Eletrobras com o seu grau de endividamento, a chamada “Ebitda”,  mostra, segundo o engenheiro Felipe Araújo, que o caixa da empresa é superavitário.

“ A Eletrobras está numa relação de quase poder emprestar dinheiro. A empresa pode entrar em leilões, mas só finge que entra porque não está ganhando nenhum”, denuncia o direitor da Aesel. A entidade em nota, demonstra que a Eletrobras possui capacidade de investimentos para o desenvolvimento do Brasil. A estatal investiu R$ 5 bilhões por ano no quinquênio 2016-2020, com forte incremento na distribuição de dividendos de 2018 a 2020. Todavia, em cinco anos do governo Dilma Rousseff (PT), de 2011 a 2015, a companhia investiu R$ 10,5 bilhões por ano.

Já Paulo de Tarso, reforça o papel do Estado no atendimento à população. De acordo com ele, o setor privado não vai cumprir este papel. Ao contrário, vai encarecer as tarifas para acumular lucro em prejuízo à soberania nacional e às indústrias brasileiras.

“ Com energia mais cara, os produtos fabricados aqui também ficam mais caros. É uma relação desfavorável ao mercado internacional. Com as tarifas fora da concorrência, o Brasil sofrerá ainda mais um processo de desindustrialização, retardando a recuperação da economia e o país deixando de melhorar seu PIB [Produto Interno Bruto]”, conclui o presidente da CNU.

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