Em meio a surto de Sarampo, perfis antivacinas espalham absurdos nas redes

Enquanto o poder público faz barulho pelas ruas para incentivar a população a se vacinar contra o sarampo em São Paulo, um movimento trabalha na internet para demonizar o uso de vacinas na prevenção de doenças.

As tentativas de catequizar novos adeptos à corrente antivacinação acontece em meio à explosão em SP no número de casos de sarampo, doença altamente contagiosa. Segundo o balanço mais recente divulgado pela Secretaria de Saúde do Estado nesta terça-feira (30), 633 pessoas pegaram sarampo em 2019 em São Paulo, sendo que 76% (484) delas ficaram doentes na capital.

Em dois grupos antivacina (ou antivax) no Facebook, cerca de 8 000 pessoas trocam vídeos, reportagens e artigos ditos científicos para defender que as vacinas, na verdade, devem ser tratadas como “veneno” e que “têm capacidade de matar seres humanos”.

Administrador da página “VACINAS: O maior CRIME da história!”, o empreendedor autônomo de Belo Horizonte Jorge Aramuni contou a VEJA SÃO PAULO que criou esse canal “para ajudar as pessoas”. Com segundo grau completo, Aramuni concedeu uma entrevista de mais de uma hora, citando uma série de frases que afirma ter tirado de livros e artigos em inglês que lê desde os anos 1990, quando começou a estudar esse tema.

“Comecei a me interessar pelo assunto quando minha mãe ficou com lúpus. Ela foi vítima das vacinas. Passei a ir à bibliotecas e estudar”, diz o homem de 58 anos. “Parei meus negócios para me debruçar sobre esse tema. Você não sabe o quanto eu tive que estudar, o tanto de livros que tive que ler”. O dono da página garantiu que nunca ganhou dinheiro com sua atuação online.

Uma das fontes citadas por ele durante a entrevista foi o livro “Dissolving Illusions”, escrito pela médica Suzanne Humphries, considerada uma das principais ativistas do movimento antivacina nos Estados Unidos. “No livro, ela prova que todos os pacientes que tomaram vacinas ficaram doentes. Você precisa ler”, afirma Aramuni.

Durante a conversa, Aramuni disse acreditar que algumas vacinas são produzidas a partir de células de bebês abortados. Outras, disse, por meio de células de macaco. “Ninguém fala disso na imprensa. Isso gera uma tragédia imensa para o organismo”, aponta.

Membro do Comitê de Imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia, a médica Rosana Richtmann rebateu todas as informações compartilhadas por Aramuni e outros adeptos. “Não existem vacinas produzidas por células de bebês abortados. Não existem vacinas produzidas por células de rins ratos, nem de macacos”, afirma a especialista, segundo o MSN.

Sobre a possibilidade esse método de prevenção contra doenças poder matar seres humanos, Rosana afirma que as chances são remotas. “Existe um risco muito pequeno. No exemplo da febre amarela, 1 pessoa pode ter evento adverso grave em 500 000 doses aplicadas”, explica. “A doença da febre amarela mata em cerca de 35% dos casos. Assim, é evidente que o risco da não vacinação é muitíssimo maior”.

No grupo do empreendedor mineiro, alguns membros divulgam informações sobre uma outra teoria. Segundo ela, o magnata americano Bill Gates, fundador da Microsoft, investiu dinheiro no mercado de vacinas para reduzir a população. O administrador afirmou que, embora acredite nisso, sugere que os demais seguidores não realizem postagens como essas para não serem ridicularizados. “Bill Gates disse isso quatro vezes em um vídeo em que dizia que a ideia era reduzir a população mundial em 15%. Mas não aprovo esse tipo de post no grupo para as pessoas não zombarem da gente”, relata. A teoria é um boato famoso, já desmentido diversas vezes.

Fora do ar

Nesta segunda-feira (29) à noite, o Facebook tirou a página que Aramuni administrava do ar. Quando foi desativada, o perfil tinha cerca de 6 000 seguidores. Inconformado com a notícia, Aramuni ligou para a reportagem: “Estão tentando calar quem está tentando falar a verdade. Vou entrar com um processo na Justiça contra o Facebook por ter tomado essa atitude arbitrária”, diz Aramuni. Nesta terça-feira (30), o empreendedor postou um vídeo de 19 minutos em seu perfil pessoal da rede social para manifestar indignação.

Nos casos envolvendo vacinas especificamente, a rede social montou uma operação especial em vigor desde março para combater a desinformação envolvendo o tema.  Naquele mês, o Facebook divulgou uma nota assinada por Monika Bickert, vice-presidente global de Políticas de Conteúdo da plataforma, na qual anunciava uma série de ações. Entre elas estão reduzir a o alcance e relevância de grupos que “espalham desinformação” sobre vacinas em buscas e no feed dos usuários, rejeitar anúncios destes conteúdos, deixar de recomendar esses temas na rede e impulsionar o compartilhamento de iniciativas educativas e oficiais sobre vacinas.

“Nós estamos buscando formas de dar às pessoas informações mais precisas de organizações especialistas em vacinas no topo dos resultados de buscas relacionadas, em Páginas que discutam o tema, e em convites para participar de Grupos sobre o assunto”, diz o texto.

O posicionamento oficial do Facebook sobre a desativação foi de que a rede social está trabalhando para reduzir a propagação de conteúdos enganosos sobre vacinas. Diz apenas que suas equipes estão trabalhando apenas para reduzir a distribuição desse tipo de material pelos usuários (e não remover). A página foi reativada na manhã desta quarta-feira (31).

Pró-vacinas

No Brasil, o movimento antivacina não tem tanta força quanto em países como os Estados Unidos. É de lá, inclusive, de onde são importadas a maior parte das teorias compartilhadas à exaustão pelos membros desses grupos brasileiros.

Porta voz da Secretaria de Saúde, a médica Helena Sato, diretora de imunização da pasta, disse que é uma irresponsabilidade duvidar da eficiência das vacinas. “Dizer que vacina não é segura é uma irresponsabilidade imensa. Temos exemplos concretos de que, com a vacina, doenças foram até erradicadas, como a poliomelite e paralisia infantil no estado”, afirma.

Antes de chegar ao mercado, Sato explica que as vacinas são primeiro testadas em animais e depois passam por quatro fases de testes em pequenos grupos de pessoas. “Esse é o procedimento padrão com qualquer tipo de vacina”, diz a médica. Uma dessas etapas se chama, inclusive, “teste de efetividade”, em que os cientistas aplicam a vacina em um grupo e em outro não.

Sato se refere a outro argumento que circula dentro dos grupos antivax, presente no vídeo abaixo, em que um rapaz diz que não há testes antes da liberação das vacinas.

Adeptos pelo mundo

Isma de Sousa afirma que decidiu criar a página “O lado obscuro da vacina” no Facebook em 2014 após um de seus três filhos ter manifestado uma reação a uma vacina.

Ela não quis revelar sua profissão. Mas fez questão de afirmar que se aprofunda no assunto desde então, por meio de seu acesso privilegiado a estudos e a uma vasta rede de material científico em universidades da Suécia, país onde mora há 19 anos. “Sempre tive acesso a materiais de ponta nas universidades”, relata. “Colocaram a vida do meu filho em risco, porque a vacina continua uma substância que meu filho não podia tomar”.

Segundo a mulher, a vacina que o menino iria tomar era fabricada por meio da proteína do ovo, substância à qual o filho era alérgico. Isma se diz defensora da não obrigatoriedade das vacinas. No Brasil, a obrigatoriedade da vacinação em crianças está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A administradora da página cobra também que o poder público passe a informar a população sobre eventuais reações causadas pela vacinação antes de fazer campanhas. “Isso é uma falta de fidelidade com o cidadão. Precisam ter mais cuidado com a população. Se o governo sabe que a vacina causa reação, como no meu filho, porque mantém a lei?”, questiona.

A página aberta por Isma, ainda ativa, tem cerca de 2 000 seguidores. Lá, membros compartilham não só informações contra a vacinação, como também memes e notícias sobre política e mensagens bíblicas.

No dia 15 de julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta sobre a estagnação da taxa de vacinação internacional. Segundo a entidade, a cobertura atual no mundo é de 86%, enquanto o ideal deveria ser de 95% para prevenir novos surtos epidêmicos. Um dos casos apontados como exemplo pela OMS foi o retorno do sarampo, que matou cerca de 110 000 pessoas no mundo em 2017. Desde o começo do ano, a organização tem detectado o aumento da desconfiança das pessoas com as vacinas. Por isso, em janeiro, inseriu a “hesitação vacinal” entre as dez maiores ameaças à saúde global.

Isma rechaça o rótulo de ser alguém “antivacina” e se diz vítima de termos pejorativos “de quem não tem capacidade de admitir que as vacinas causam reação”.

Em dezembro de 2018, a jovem apresentadora Bray Payton morreu aos 26 anos na Califórnia, vítima de gripe H1N1, doença conhecida como gripe suína, e que já é prevenida mediante vacina. De viés conservador, Bray era considerada uma estrela em ascensão por conta de suas opiniões políticas. Sua morte também gerou polêmica na época por causa de um post que fez no Twitter, em 2011, no qual descrevia a vacinação como “o demônio”. Quando fez o comentário, o estado onde morava e trabalhava passava pela campanha de imunização contra a coqueluche.

Material no YouTube

Os conteúdos relacionados ao movimento antivacina não estão presentes apenas no Facebook. Estão também em vídeos publicados no YouTube. Uma reportagem publicada pela BBC Brasil mostra que membros do movimento injetam dinheiro em vídeos gravados por eles sobre teorias importadas dos Estados Unidos. Segundo a BBC Brasil, a iniciativa mantida por alguns adeptos do movimento criava uma espécie de “bolha de críticos às vacinas” na plataforma de vídeos.

Após a publicação da reportagem, o YouTube informou que desmonetizou os vídeos que diziam abertamente “você não deve se vacinar”. Comunicou também que as gravações, algumas com mais de 800 mil visualizações, seriam retiradas do ar.

01/08/2019

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