Como Bolsonaro justifica a troca de diretor, nome e ‘casa’ do Coaf

No último dia 09, uma sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) confirmou uma série de mudanças no Conselho Administrativo de Atividades Financeiras (Coaf). O órgão vai mudar de presidente, de nome e até de “casa”: deixará a estrutura do Ministério da Economia e irá para o guarda-chuva do Banco Central. As mudanças devem ser oficializadas em uma medida provisória (MP), a ser publicada no Diário Oficial da União desta terça-feira (20).

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Segundo o presidente da República, a mudança busca blindar o Coaf de interferências e pressões políticas. Mas a alteração também acontece depois de o presidente atual do órgão, Roberto Leonel, criticar decisão do STF envolvendo o filho presidencial Flávio Bolsonaro.

O Coaf produz todos os anos milhares de relatórios sobre transações financeiras consideradas atípicas – não necessariamente ilegais – que subsidiam o Ministério Público e a polícia, informa o MSN.

Nos últimos anos, essas informações serviram de base para várias investigações de casos de corrupção e de lavagem de dinheiro (quando alguém tenta dar aparência lícita a dinheiro fruto de crime). Lava Jato, Zelotes, Greenfield e várias outras grandes operações anticorrupção dos últimos anos utilizaram relatórios do Coaf.

A reportagem da BBC News Brasil conversou com pessoas do órgão (sob condição de anonimato) e com procuradores do Ministério Público Federal para entender quais podem ser os impactos das mudanças planejadas por Bolsonaro para este tipo de investigação.

No órgão, o temor é se ele manterá sua estrutura atual de técnicos – o Coaf passou de 37 servidores no começo do ano para 71, agora – e se terá independência política para atuar.

Já entre os procuradores, a preocupação maior é com a decisão liminar (provisória) do presidente do STF, Dias Toffoli, de julho deste ano. Na ocasião, Toffoli suspendeu de forma provisória todos os processos judiciais que utilizavam dados como os produzidos pelo Coaf sem autorização prévia da Justiça. Pelo menos dois procuradores relataram à BBC saber de investigações que foram paralisadas esperando uma decisão definitiva do STF.

No Banco Central, comandado por Roberto Campos Neto, o Coaf deverá passar a se chamar Unidade de Inteligência Financeira (UIF). A BBC News Brasil também confirmou de forma independente a saída do auditor fiscal da Receita Roberto Leonel da presidência do órgão. O mais cotado para substituí-lo é Ricardo Liáo – que é servidor de carreira do Banco Central e atual diretor de Supervisão do Coaf.

O que Bolsonaro diz?

A jornalistas, Bolsonaro disse que o objetivo da mudança era evitar que o Coaf fosse alvo de pressões políticas.

“Agora, o que nós pretendemos, é tirar o Coaf do jogo político. Pretendemos (…) vincular ao Banco Central. Daí acaba… tudo onde tem a política, mesmo bem intencionado, sempre sofre pressões de um lado ou de outro, e a gente quer evitar isso daí”, disse ele.

“Não há desgaste nem para mim nem para o Moro (com a decisão). O Coaf, lá no Banco Central, vai fazer seu trabalho sem qualquer suspeição de favorecimento político para um lado ou para o outro”, disse Bolsonaro.

“Olha só: eu posso hoje chegar para o Moro e falar ‘Moro, tira o cara do Coaf aqui’. Chega num entendimento e tira. Eu quero evitar isso daí, né? Quanto menos o Estado, menos a política interferir no destino do Brasil, eu entendo que seja melhor”, explicou o presidente.

Desde que foi criado, em 1998, o Coaf sempre esteve sob o guarda-chuva do antigo Ministério da Fazenda (hoje parte da pasta da Economia). No começo deste ano, o governo tentou colocar o órgão sob o comando de Sérgio Moro, no Ministério da Justiça, por meio de uma medida provisória – mas o Congresso não autorizou a mudança, e o Coaf acabou na alçada do ministro Paulo Guedes (Economia).

No começo do ano, Sérgio Moro indicou para a chefia do órgão o auditor fiscal da Receita Roberto Leonel. Paranaense como Moro, Leonel comandava a área de investigação da Receita em Curitiba, e era o responsável por fazer os levantamentos contábeis solicitados pela Lava Jato. Desde que assumiu o comando do Coaf, Leonel quase dobrou o número de servidores do órgão: passaram de 37, no fim de 2018, para 71 agora.

Isto só aconteceu por que o Coaf ganhou, no começo do governo Bolsonaro, uma prerrogativa que antes era reservada à Presidência da República: o órgão pode requisitar servidores de qualquer lugar da Esplanada dos Ministérios, sem que o órgão de origem do servidor possa recusar a ida deste. Os pedidos do Coaf passaram a ser “irrecusáveis”.

O governo também aumentou o número de “funções gratificadas” à disposição do Coaf: trata-se de um pagamento a mais que é feito para atrair servidores públicos de outros ministérios.

Com as mudanças, servidores do órgão temem justamente pela manutenção desta estrutura.

Informações preliminares sobre a medida provisória sugerem que os técnicos do Coaf serão mantidos – mas o órgão passará a ter um conselho deliberativo formado por voluntários – pessoas com “notório saber” no tema do combate à lavagem de dinheiro.

A crise se chama Queiroz

Muitos brasileiros ficaram sabendo da existência do Coaf quando relatórios produzidos pelo órgão foram usados na operação Furna da Onça, que investiga um suposto esquema de corrupção na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O Coaf identificou movimentações suspeitas de ex-servidores do gabinete de Flávio Bolsonaro (PSL), o filho mais velho do presidente da República – então deputado estadual na Alerj.

As movimentações suspeitas identificadas pelo órgão somavam R$ 7 milhões geridos por um ex-motorista de Flávio, Fabrício Queiroz, ao longo de três anos. Também incluíam um cheque de R$ 24 mil para a primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Fabrício Queiroz faltou às audiências convocadas pelo Ministério Público por quatro vezes, e depois disse que as movimentações em sua conta eram fruto de “rolos” que ele fazia com automóveis. Para os investigadores, porém, as transações na conta de Queiroz indicam que Flávio Bolsonaro ficava com parte dos salários de seus assessores na Alerj. Ele sempre negou esta prática.

Em julho deste ano, Dias Toffoli suspendeu de forma liminar (provisória) todos os processos do país que usam dados compartilhados por órgãos de fiscalização e controle – como o Coaf – sem autorização prévia da Justiça.

A decisão de Toffoli atendeu a um pedido da defesa de Flávio Bolsonaro, sob a alegação de que o senador teve seu sigilo bancário quebrado de forma indevida pelo Coaf. A decisão de Toffoli deve ir a julgamento no plenário do STF em 21 de novembro.

A liminar foi criticada por Leonel – o que desagradou o Palácio do Planalto.

“Não cabe ao Coaf questionar decisões judiciais. No entanto, não há como negar a preocupação com o impacto imediato da decisão liminar e, principalmente, caso seja mantida no julgamento de mérito (no plenário do STF). Nesse cenário, a efetividade do sistema brasileiro de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, que tanto evoluiu nos últimos anos, ficaria sensivelmente prejudicada”, disse Leonel ao jornal O Estado de S. Paulo, em julho.

No começo de agosto, a crise se aprofundou quando outro ministro do STF, Alexandre de Moraes, suspendeu uma apuração da Receita sobre 133 contribuintes que poderiam estar envolvidos em irregularidades – entre eles um colega de Moraes, Gilmar Mendes. Leonel é oriundo da Receita, assim como a maior parte dos dirigentes atuais do Coaf.

Depois da decisão de Moraes, o ministro da Economia, Paulo Guedes, deu a entender que o passado de Leonel na Receita e na Lava Jato estava criando desconfiança.

“Será que alguém que veio da Receita, trabalhou na Lava Jato e, de repente, recebe um Coaf, que é de monitoramento, será que isso deixa uma porção de gente com dúvidas a respeito se está havendo coordenação, um ataque coordenado a uma outra instituição? Isso pode estar por trás de boa parte dos questionamentos”, disse Guedes, no começo de agosto.

Por fim, no domingo (18), reportagem do jornal Folha de S. Paulo e do site jornalístico The Intercept Brasil disse que procuradores da Lava Jato em Curitiba teriam pedido informações da Receita a Roberto Leonel de forma não oficial, fora dos procedimentos normais – não está claro se as informações foram repassadas ou não.

Os procuradores dizem não reconhecer a autenticidade das mensagens, e a Receita Federal alega que o compartilhamento de informações é legítimo.

Procuradores temem resultado no STF

Entre os procuradores – que estão entre os maiores usuários das informações produzidas pelo Coaf – a mudança do órgão da alçada da Economia para o Banco Central não é vista como algo necessariamente ruim. O temor principal diz respeito à decisão de Toffoli.

Um profissional que atua na região Norte do país disse à BBC News Brasil que decidiu paralisar temporariamente investigações de sua alçada que usam dados do Coaf, até a decisão provisória de Toffoli seja julgada pelo plenário do Supremo. O temor é de que o uso dessas informações resulte em nulidade dos processos mais adiante, a depender de como o STF decida, em novembro.

Outro procurador, que atua na PGR, em Brasília, disse saber de mais casos desse tipo.

Janice Ascari é procuradora e integra a Força-Tarefa da Lava Jato em São Paulo. Segundo ela, é um mito dizer que o Coaf quebra sigilos bancários de forma não autorizada. A decisão de Toffoli revela um desconhecimento sobre os detalhes do funcionamento do órgão, diz a procuradora. “A gente ficou realmente surpreso com a abordagem da liminar”, diz.

“O Coaf nada mais é que uma unidade de inteligência financeira. Na verdade, ele não quebra o sigilo de ninguém. Ele recebe as informações dos bancos, que estão obrigados por lei, mas não tem acesso às contas bancárias das pessoas. Os bancos é que detectam as operações atípicas e dizem ‘opa, tem algo errado aí'”, diz ela.

O Coaf também coordena a participação brasileira em várias organizações internacionais de combate à lavagem de dinheiro, e a mais importante delas é o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF).

Os países que fazem parte do GAFI seguem uma série de recomendações da entidade – que estão em risco se a decisão de Toffoli for confirmada pelo plenário.

“As obrigações que o Brasil e outros países assumiram no GAFI exigem a manutenção de um sistema no qual as unidades de inteligência financeira (UIFs, como o Coaf) devem ter um canal ágil e direto para reportar situações suspeitas de lavagem de dinheiro ao Ministério Público”, diz um procurador envolvido com o assunto.

“Seríamos párias na comunidade de países, já que a função das UIFs na repressão à lavagem de dinheiro é indiscutível”, diz.

Como funciona o Coaf?

O Coaf funciona a partir de alertas feitos por alguns tipos de empresas, especificadas em lei. Bancos, corretoras de valores, joalherias, concessionárias de automóveis e até empresas que agenciam atletas são obrigadas por lei a mandar informações ao Coaf sempre que detectam transações altas em dinheiro vivo ou com indícios de irregularidades.

O repasse de informações é automático em alguns casos – como operações com dinheiro acima de R$ 50 mil, ou quando a movimentação é considerada atípica (um valor que foge do padrão de transações de um cliente, ou que seja incompatível com a renda da pessoa. Hoje, o Coaf recebe cerca de 14 mil alertas deste tipo por dia. É no meio deste palheiro que os servidores do Coaf buscam informações que possam ser úteis numa investigação criminal.

No ano passado, a atuação do Coaf ajudou a bloquear R$ 176 milhões de origem suspeita. O valor é quase quatro vezes maior que o de 2017, quando os bloqueios judiciais baseados em relatórios do órgão chegaram a R$ 46 milhões.

Ao longo do ano passado, o órgão produziu e distribuiu 7.345 Relatórios de Inteligência Financeira, listando mais de 378 mil pessoas físicas e jurídicas que fizeram transações atípicas.

20/08/2019

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