Banalização do mal e a humanidade sob pressão

No dia 10 de Janeiro de 2016 a exatamente um ano atrás faleceu um dos maiores artistas que esse mundo já conheceu, se chamava David Robert Jones ou apenas, David Bowie. Nascido na cidade de Brixton na Inglaterra deixou um legado musical inigualável, mas aqui vamos destacar apenas uma canção do seu vasto repertório artístico: Under Pressure.

Escrita praticamente sozinha por Bowie em uma jam session com John Deacon, foi lançada em 26 de outubro de 1981 junto com a banda Queen, originalmente intitulada People on Streets (pessoas nas ruas)a canção é quase que um protesto contra a pressão de viver em um mundo em que famílias são separadas, onde multidões caminham sem saber exatamente para onde e nem porquê, o consumismo desenfreado tornando os indivíduos nas coisas que consomem, o amor se tornando um sentimento fora de moda. No meio desse turbilhão dessa modernidade líquida em que os valores se liquefazem ficam as perguntas: que mundo é esse? Haveria alguma saída dele? É com esse estarrecimento que vemos tudo o que vem acontecendo no Brasil e no mundo e tem deixado a nós, intelectuais, juristas, ou mesmo parcela da humanidade, chocados.

A exemplo do que tenho a ilustrar é o recente artigo publicado pela Financial Times intitulado “Brazil neo-nazi claim challenges myth of nation’s racial harmony”[1](algo como “O movimento neo-nazista brasileiro está desafiando o mito da democracia racial).

O artigo do Jornal americano em questão escrito por Joe Leahy põe o deputado Federal Jair Bolsonaro como personagem central deste lamentável movimento que alguns tem chamado de “cultura do ódio” em nosso país.

Senão vejamos, se faz evidente que se trata de uma situação alarmante que nos deve provocar a nossa reflexão, pois como bem retratou o escritor e colunista do jornal El Pais Luiz Ruffato[2]; associando inclusive aos recentes massacres no Sistema Penal Brasileiro (na Penitenciária Anisio Jobim em Manaus (AM), culminando na morte de 56 detentos e na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo (RR) levando a morte de 33 detentos), o pensamento fascista no território brasileiro prolifera.

E não é somente este deputado que faz coro ao discurso punitivista no Congresso Nacional brasileiro, o também deputado federal Major Olimpo desafiou os presos do Complexo Penitenciário de Bangu (RJ) a cometer massacres que ultrapassassem a brutalidades dos episódios recentes.

Se faz salutar ainda demonstrar que a voz parlamentar é reflexo das demandas populares, pois como bem colacionado pelo colunista uma pesquisa realizada no mês de Outubro do ano de 2011 observou que 46% dos brasileiros são favoráveis à pena de morte (31% defendem totalmente e 15%, em parte), 79% defendiam penas mais rigorosas para os criminosos, a prisão perpétua aceita por 69% e 86% defendiam a redução da maioridade penal. (CNI/IBOPE 2011)[3] e 57%, ou seja, 6 em 10 dos brasileiros concordam com a frase “bandido bom, é bandido morto” (FBSP/Datafolha 2016)[4].

A leitura que podemos fazer desses dados é que a maioria da população brasileira já não confia mais no regime democrático pautado na defesa dos Direitos Humanos, inclusive, como bem relatou o magistrado manauara Luis Carlos Valois[5] em recente entrevista no site Midia Ninja, essa mesma sociedade mal sabe o que são eles ou mesmo a quem eles servem:

Direitos humanos não é um senhor de terno e gravata, não é isso, não existe isso, é de todo mundo, cada um que reinvindique o Direito Humano do próximo, seu e de quem ele quiser. Se você tá reclamando cadê o Direitos Humanos, por quê não vai buscar os Direitos Humanos? Por quê tu não vira o Direitos Humanos defensor das vítimas? Por quê a sociedade que reclama o direitos Humanos da vítima não forma uma Associação de Defesa dos Direitos Humanos das vítimas? Toda vez que um direito atinge uma pessoa que não pode reivindica-lo isso é Direitos Humanos, e o preso tá preso.

O magistrado prossegue revelando que a responsabilidade de um juiz é justamente assegurar a observância de tais direitos, tendo em vista, via de regra, não ser possível ao preso pleiteá-los por conta própria: “eu não sou Madre Teresa de Calcutá, eu não gosto de preso, meu trabalho é defender direito do preso. Eu vejo o meu trabalho com responsabilidade.”

Vale ressaltar que ele ainda faz relação das rebeliões com o discurso da palavra “bandido” no qual o magistrado ressalta muito bem que não há etmologia que relacione este adjetivo, p. Ex. Na língua anglo-saxã:

Inclusive eu acho que uma das causas dessa rebelião é esse momento que agente está vivendo, um momento de ódio, esse negócio de “bandido bom é bandido morto” passa para o preso, quando o preso matou o bandido, todo o bandido ruim é o outro, a gente não é o “bandido” ruim. Porque “bandido” todos nós somos, é uma palavra que não tem nem tradução no inglês só pra tu ter uma idéia, não tem “bandido” nas outras línguas, “bandido” é uma palavra que só tem em português. Por quê não é criminoso? Acusado? Condenado? “Bandido” pode ser o político, pode ser o meu vizinho (esse meu vizinho é “bandido”, esse cara é um “bandido”, esse taxista é um “bandido”), tudo é bandido, tudo pode ser bandido. É o conceito que se encaixaonde eu quero, dependendo do meu preconceito.

E o magistrado ainda ressalta a estrita relação dos processos de criminalização (Baratta)[6] com a retroalimentação desse discurso de ódio no atual momento histórico-político que a sociedade vive:

Nasce no Brasil uma coisa dessa, com uma disparidade de renda enorme em uma desigualdade social enorme, e aí a gente cria esse negócio do ódio aí cria a palavra bandido e os presos como a palavra bandido se encaixa em tudo, os presos encaixaram na deles (“bandido é o estuprador, não sou eu que furtei”. Bandido é o “x9” (sic) que dedura para a polícia, isso é um bandido”).

Toda essa violência hobbesiana que se atribuído da máxima de Plauto “lupus est homo homini non homo” (o homem é um lobo aos seus iguais), denota é apenas um reflexo desse culto de ódio na sociedade, que tal qual um vulcão latente esperando para explodir espalhando lava a devastar tudo que vier em seu caminho.

Faz importante anotar que esse discurso de ódio renasce junto com a pós-modernidade e a cultura do consumo da Modernidade Líquida traduzida por Zygmunt Bauman, sociólogo polonês (e ousamos a dizer, uma das mais importantes, senão a mais, personalidade intelectual do século XXI) que faleceu no dia 09 de Janeiro do corrente ano de 2017.

Bauman em seu livro “Modernidade Líquida” associa ao que ele chamará de pós modernidade a diversas obras literárias, ao qual fazemos destaque a duas em especial, são elas: O admirável mundo novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell.[7] Ambas visões grandiosas sobre um futuro distópico (ao contrário das “utopias” que analisam um mundo perfeito aos olhos da filosofia moral, as distopias são lugares ou estados imaginários em que se vive condições de extrema opressão, desespero ou privação). O pensador polonês inclusive associa-as com os prognósticos de temores e sobre os tipos de horrores aos quais o mundo estaria fadado, fato é que estas obras haviam sido publicadas a mais de meio século antes da era que vivemos.

Prenuncia o pensador polonês no capítulo do qual discorre sobre o caráter individualista da sociedade contemporânea, que este é um traço determinante da sociedade do espetáculo, ou, como ele prefere denominar, sociedade do consumo, que restringe as liberdades, ampliando o controle.[8]

Importante salientar que para confirmar tal assertiva, ele nos remete a ideia entre os sociólogos de duas passagens bíblicas, os capítulos de: Gênesis e Josué (Joshua)

Em Gêneses a desordem seria a regra, enquanto a ordem uma exceção, por sua vez em Josué a ordem é a regra e a desordem uma exceção.

Por esse motivo vemos que ele relaciona as obras distópica dentro do discurso de Joshua, um mundo ordeiro rigidamente controlado (o que neste contexto seria a mídia de massa). Tudo servindo a algum propósito, esse mundo não teria espaço para o que não tiver seu uso ou próposito (aqui poderíamos inserir aqueles que são selecionados pelos processos de criminalização), ou seja, para um mercado produtivo, naturalmente aqueles que não servirem para os meios de produção naturalmente serão criminalizados.

O fato é que com o avanço da automação (substituição da mão de obra humana, pela máquina – cf. As teorias do fordismo e toyotismo) uma massa maior de indivíduos serão colocados como inutilizáveis, por assim dizer, aos processos de produção capitalistas. Sendo assim, isso acaba por se reproduzir no que chamamos de “encarceramento em massa”, prisões cada vez mais superlotadas, tornando-se um verdadeiro depósito humano, aumentando assim a vigilância panóptica do “Grande Irmão”, as agências do sistema penal e o Estado se tornam o “olho que tudo vê” e a vigilância se torna a essência da sociedade.

E a própria sociedade acaba aceitando e inclusive gostando do estado de miséria em que se encontra, daí surge o fenômeno da “banalização do mal” no qual Hannah Arendt em sua obra Eichmann em Jerusalém disserta sobre o tema ao ponderar no Julgamento de Nuremberg que o funcionário público do Estado Nazista havia cometido tais atrocidades acobertado pela legalidade e legitimidade conferida pelo Estado e pela sociedade,

Na década de 60, Adolf Eichmann fora captado e transportado para a cidade santa dos Judeus, Jerusalém, por determinação das tropas israelenses, onde se esperava que fosse ocorrer o mais famoso julgamento de um algoz nazista. Eichmann até então, considerado como um ser imaginado pela mitologia, sanguinolento, mostra-se, durante o processo, alguém muito diferente das expectativas alheias quanto à sua personalidade.

Eis que, deparam-se com um servidor público de pouca monta, uma pessoa que tinha por objetivo primordial vencer na vida a todo custo, cheio de esperanças, incapaz de refletir sobre as conseqüências de suas ações, e; impossibilitado de escapar da grande fúria dos que assistiam ao grande espetáculo do julgamento.

Se fazendo relevante destacar:

Existe um outro lado dessa questão, mais delicada e politicamente mais relevante. Uma coisa é desentocar criminosos e assassinos de seus esconderijos, outra é encontrá-los importantes e prósperos no âmbito público — encontrar nas administrações estadual e federal e, geralmente, em cargos públicos inúmeros homens cujas carreiras floresceram no regime de Hitler. Claro, se a administração Adenauer fosse exigente demais para empregar funcionários com passado nazista comprometedor, talvez não houvesse administradores de nenhuma espécie.[9]

No fim das contas a grande maioria dos funcionários do Estado nazista eram como Eichmann, isto é, o próprio Estado reproduzia a violência. Desta feita se faz compreensível, embora nunca aceitável, entender o porquê o brasileiro v. G opta por ecoar o discurso do punitivismo e porquê a saída do Governo Federal sempre é a construção de mais presídios, inclusive trata como ‘imperiosa’ essa medida[10], até mesmo a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) faz a defesa de novos presídios[11], todas essas medidas populistas só servem para corroborar com a sociedade do espetáculo e vigilância:

“A construção de novas prisões, a redação de novos estatutos que multiplicam as infrações puníveis com prisão e o aumento das penas – todas essas medidas aumentam a popularidade dos governos, dando-lhes a imagem de severos, capazes, decididos e, acima de tudo, a de que “fazem algo” não apenas explicitamente pela segurança individual dos governados, mas, por extensão, também pela garantia e certeza deles” (Callegari e Wermuth, 2010)[12]

Bilhões de reais a serem investidos na construção de mais penitenciárias que infligiram mais dor e sofrimento (penitência – dor, sofrimento), ao invés de serem destinados aos investimentos na Educação Pública de qualidade, reduzindo assim as mazelas sociais, incentivando o desenvolvimento econômico e social.

Um Estado que pune um grande número de condutas e condena um seleto grupo de pessoas (aqueles que não tem utilidade produtiva para o mercado, em sua gigantesca maioria), se torna aceitável e até mesmo admirável o discurso bandido bom é bandido morto.

Mas não podemos e nem devemos aceitar isso, devemos reagir, a função de resistência do jurista e do cidadão que se encontra abismado neste mundo líquido é o verbo resistir.

Como salienta Bauman:

busca da identidade é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme. Lutamos para negar, ou pelo menos encobrir, a terrível fluidez logo abaixo do fino envoltório da forma; tentamos desviar os olhos de vistas que eles não podem penetrar ou absorver. Mas as identidades, que não tornam o fluxo mais lento e muito menos o detêm, são mais parecidas com crostas que vez por outra endurecem sobre a lava vulcânica e que se fundem e dissolvem novamente antes de ter tempo de esfriar e fixar-se.[13]

É reconhecer as mazelas, entende-las mais principalmente buscar através do diálogo buscar resoluções criativas dos conflitos (Justiça Restaurativa – Albert Eglash), é reestabelecer o discurso democrático, acreditar nele, disseminá-lo. Para isso devemos nos valer da pesquisa científica, bem como das artes e da literatura, para o resgate da consolidação desses valores.

Resistir a passividade de se acomodar ao status quo do discurso do ódio, é lutar pelo seu inverso, batalhar sempre por um mundo de mais compaixão, solidariedade, comunhão. Porque no fim das contas é como diz o Starman “o amor te desafia a se importar com as pessoas no limite da noite, e o amor desafia você a mudar o nosso modo de nos preocupar com nós mesmos. Esta é a nossa última dança. Isto somos nós mesmos. Sob Pressão.”

Pressão…


Rodrigo Bahia de Souza é advogado especialista em Ciências Criminais pelo Centro Universitário do Pará (CESUPA).

Foto: Andressa Anholete/AFP

Fonte: Justificando

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