Apelo contra armas ganha força após novos massacres nos EUA

Um ciclo macabro se repete nos Estados Unidos com dois massacres e, até agora, 29 mortos a tiros em menos de 13 horas, numa loja do Walmart em El Paso (fronteira entre México e Texas) e em Dayton, Ohio.

Primeiro, choque, dor, emoção. Em seguida, a tentativa de apontar o dedo para culpados, de encontrar saídas racionais e políticas para evitar o próximo massacre. Tão recorrente quanto as chacinas é a pressão contra as armas de fogo, num país onde fazem parte da cultura como em nenhum outro, onde um lobby organizado barra qualquer iniciativa de controle no Congresso.

Dependendo do critério usado – levando em conta o número de vítimas e a natureza do atirador –, houve 114 massacres com 932 mortos desde 1982 (segundo a Mother Jones), ou 2.191 com 2.476 mortos desde o ataque que matou 27 pessoas na escola Sandy Hook em Newtown, Connecticut, em 2012 (segundo o Vox).

Entre os países ricos, os Estados Unidos se destacam pelo número de mortes provocadas por armas de fogo, em torno de 12,2 para cada 100 mil habitantes, segundo os últimos dados disponíveis no Gun Policy Project (2017), da Universidade de Sydney. É um número inferior ao do Brazil (22), mas superior ao de países como México (11,6) ou Uruguai (11,7), para não falar na França (2,3), Suíça (2,8) ou Reino Unido (0,2).

Os Estados Unidos também representam um ponto fora da curva quando se analisa a quantidade de armas de fogo em poder de civis. Em 2017, havia 120,5 para cada 100 mil habitantes, um crescimento de quase 20% desde 2007, quando eram 101,5. Também em 2017, eram 41,3 na Suíça, 34,7 no Uruguai, 19,6 na França, 12,9 no México, 12,3 na Rússia, 8,3 no Brasil e 0,3 no Japão.

A associação entre quantidade de armas de fogo em poder de civis e mortes por tiros é um fato conhecido. A questão que divide opiniões e vem à tona a cada novo massacre diz respeito à causalidade e à eficácia das restrições à posse de armas para controlar tais mortes, diz o Blog do G1.

Ela ganhou vulto no Brasil com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, cujo programa de governo prevê ampliar a posse de armas, ainda que dois terços da população sejam contra, de acordo com o último levantamento do Datafolha. Desde que assumiu a Presidência, Bolsonaro editou sete decretos sobre armas, quatro deles no último dia 25 de junho, tentando pôr fim ao vaivém que marcou os três anteriores, sujeitos a críticas e questionamentos jurídicos.

Na última versão, o governo facilita a posse, regula a permissão de porte para várias categorias, entre elas produtores rurais, caçadores e frequentadores de clubes de tiros, e ainda mantém abertas brechas para a compra de fuzis, sujeita a uma definição que ainda depende do Exército. Está clara a intenção do governo de tornar as armas mais acessíveis aos cidadãos, mas não estão estáveis as regras com que pretende fazer isso.

No levantamento mais recente, que avaliou 130 estudos sobre a regulação de armas em 10 países entre 1950 e 2014 e foi publicado em 2016 na revista médica Epidemiological reviews, os cientistas concluem que “em certos países, a implementação simultânea de restrições múltiplas às armas de fogo está associada à redução nas mortes” provocadas por elas. O levantamento também se queixa da qualidade das pesquisas a respeito.

Separar causas e consequências costuma ser um desafio em situações como essa. Mais armas causam mais violência? Provavelmente. Mas mais violência também provoca maior demanda por mais armas, pois é natural que, em sociedades mais violentas, a população procure se armar para se defender.

Com tipos específicos de violência, como os massacres a tiros, a associação pode ser mais frágil. Pelos critérios do Vox, só 451 de quase 39 mil mortes por tiros em 2016 nos Estados Unidos ocorreram nessa situação. A maioria, 23 mil, em suicídios, e 14 mil, em homicídios.

O controle de armas nos Estados Unidos teria um efeito benéfico nas taxas de suicídio e, provavelmente, de homicídios comuns. É tentador acreditar que também deteria a recorrência dos massacres. Tentador e errado. Sem dúvida pode ser necessário – embora nem isso esteja 100% claro –, mas dificilmente será suficiente.

A cada novo massacre, o lobby das armas se apressa em levantar questões de outra natureza – como doenças mentais ou até videogames – para contrapor à pressão pelo controle de armas. A maioria desses argumentos é falaciosa. Mas é verdade que, além do acesso facilitado às armas, fatores psíquicos e culturais – como a disseminação de ideologias mortíferas ou o efeito “copycat” gerado pela divulgação – são fundamentais para entender tais eventos dramáticos.

Há, enfim, um lado imponderável. O filósofo Robert Nozick costumava chamar de “sociologia normativa” nossa tendência a acreditar que alguma medida drástica do governo – como o controle de armas – pode resolver em definitivo um problema social – como a violência. O mundo, dizia Nozick, não se comporta de modo tão simples. É complexo – e governos não podem tudo.

Nem uma restrição draconiana às armas de fogo, nos moldes da imposta pelo Estatuto do Desarmamento no Brasil, bastou para deter a escalada da violência que resulta em quase 30 mil homicídios por habitante. É importante controlar o acesso às armas, mas a violência tem causas sociais mais profundas e insidiosas. Os massacres recorrentes nos Estados Unidos nos lembram de tempos em tempos a faceta cruel da humanidade, com que jamais conviveremos em paz.

05/08/2019

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