Woody Allen volta à sua melhor forma em ‘Roda gigante’

Cada pessoa desenvolve com o cinema de Woody Allen uma relação particular, de forma que qualquer opinião categórica pode irritar fãs mais sensíveis. Para mim, por exemplo, a última obra-prima do cineasta americano, até aqui, tinha sido “Match Point”, de 2005. Já imagino a reação de alguns leitores: Mas como? Você não gostou de “Meia-noite em Paris”, “Para Roma com amor” e “Café society”? Gostei de todos, mas não acho que estão no mesmo patamar. “Blue Jasmine” quase chega lá, mas o final atropelado me incomoda um pouco.

“Roda Gigante”, porém, é impecável. Não é apenas mais um filme de Woody Allen. É uma obra de arte, que resgata a investigação de dramas e conflitos profundos numa época em que o cinema envereda cada vez mais pela trilha do entretenimento descartável. Já na cenografia, que reconstitui a Coney Island dos anos 50, e na luz e nas cores da fotografia, o filme surpreende pelo refinamento. A escolha não é casual: é um momento de transformação da sociedade americana, transformação cujos efeitos no casamento, na família e nas relações amorosas renderam peças de teatro geniais nas mãos de dramaturgos como Tennessee Williams, Arhur Miller e Eugene O’Neill (este explicitamente citado no filme), informa o G1.

Mas não é apenas com o melhor teatro americano do século 20 que “Roda Gigante” dialoga, na estruturação do roteiro e na construção dos personagens: há evidentes elementos de tragédia grega na história de duas mulheres cujo passado as persegue como um destino. A garçonete frustrada e emocionalmente instável, vítima do bovarismo, e a enteada avoadinha que aparece do nada, fugindo do ex-marido gangster, como elemento disruptor de uma crise, são vítimas de suas próprias escolhas: uma e outra procuram no galante salva-vidas Mickey uma tábua de salvação, mas o naufrágio inexorável já está contratado.

Nessa altura já deve estar claro que não se trata de uma comédia. O diretor até dá umas piscadinhas para o gênero que o consagrou, como nas cenas do menino incendiário que cresce em uma família disfuncional. Mas prevalece o drama psicológico, com uma narrativa de tensão crescente. Começando por Jim Belushi, todo o elenco está muito bem (até Justin Timberlake!); mas não parece exagerado dizer que Kate Winslet faz o melhor papel de sua carreira. Ao mesmo tempo intensa e econômica, ela imprime uma verdade emocional rara à sua difícil personagem, ao mesmo tempo amarga e sonhadora. Seu quase-monólogo na sequência final é tão intenso e cheio de nuances que evoca a personagem Molly Bloom, de James Joyce.

31/12/2017

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