Dodge cria grupo para defender minorias e deve ir contra setores da gestão Temer

Apesar da declarada expectativa do governo de ver distensionada a relação com a Procuradoria Geral da República com a saída de Rodrigo Janot, a nova gestão de Raquel Dodge poderá entrar em choque com setores importantes do Executivo federal e até mesmo com parte da bancada que apoia o presidente Michel Temer no Congresso. Dodge pretende ampliar as frentes de atuação na defesa de direitos humanos, e vai encampar uma tese mais favorável à ampliação da demarcação de terras indígenas contrária à posição de Temer.

Quando ainda negociava votos para barrar a primeira denúncia da PGR, por corrupção passiva, Temer atendeu a um pleito histórico dos ruralistas e aprovou parecer da Advocacia Geral da União (AGU) que estabelece que, para reconhecimento de uma área indígena, os índios deveriam estar presentes no território no momento da promulgação da Constituição Federal, em 1988. É o chamado marco temporal, que ignora saídas forçadas de comunidades tradicionais e posteriores retornos a essas terras. O entorno de Raquel discorda do marco temporal que impede a demarcação de áreas cujos processos estão parados no governo, atesta o Extra.

Além da questão indígena, o grupo montado por Raquel para atuar pelos direitos de minorias também definiu como prioridade fazer valer o cumprimento de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, além de buscar uma atuação conjunta do Ministério Público em quatro áreas de violações recorrentes: as altas taxas de homicídios, a alta incidência de feminicídios, o cumprimento de medidas socioeducativas por adolescentes infratores e o colapso do sistema prisional. As primeiras medidas de Dodge sinalizam uma diferença de prioridades em relação ao antecessor Rodrigo Janot, cuja gestão foi bastante marcada pela atuação na Operação Lava-Jato.

A tentativa de destravar demarcações indígenas, o atendimento às convenções internacionais de direitos humanos e a atuação em áreas em que há um histórico de violações são o ponto de partida estabelecido pela gestão de Raquel, segundo três fontes ouvidas pelo GLOBO. Essa estratégia pode colocar a nova procuradora-geral em confronto com setores importantes do governo Temer e com as bancadas da bala e ruralista no Congresso, que surfam numa onda conservadora e vêm conseguindo emplacar medidas restritivas aos direitos de minorias.

ÁREAS COM HISTÓRICO DE VIOLAÇÕES

A estrutura definida pela procuradora-geral para a área de direitos humanos passa por seu vice, Luciano Mariz Maia, que tem um histórico de atuação na área. Raquel delegou a ele a atuação na defesa de direitos de minorias. A procuradora-geral criou a Secretaria de Direitos Humanos e Defesa Coletiva, vinculada a seu gabinete e ao do vice-procurador-geral. O secretário é o procurador regional da República André de Carvalho Ramos. Raquel também criou uma secretaria com o mesmo nome para assessorá-la no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A titular é a procuradora de Justiça Ivana Farina. A ideia é que o conselho consiga uma atuação conjunta do Ministério Público em áreas sensíveis, com um histórico de violações. A estrutura da PGR voltada aos direitos humanos inclui ainda a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais.

Em seu discurso de posse, Raquel falou que o Ministério Público deve “assegurar voz a quem não tem”, “cuidar da dignidade da pessoa humana” e assegurar “direitos de índios e minorias”. A procuradora-geral não fez citação explícita à Operação Lava-Jato, que foi o carro-chefe da gestão de Janot à frente da PGR. A secretaria criada por ela vai atuar especificamente nas demandas junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A ideia é tentar fazer valer o cumprimento de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, dos mais genéricos, como a Convenção Americana dos Direitos Humanos, aos mais específicos, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

No CNMP, a proposta da gestão de Raquel é colocar os assuntos de segurança pública dentro da esfera dos direitos humanos. A procuradora-geral, que preside o conselho, tentará uma ação articulada no Ministério Público, nas diferentes esferas e unidades da federação, com o Poder Judiciário e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Para isso, ela criou a Secretaria de Relações Institucionais, também com atuação vinculada ao gabinete da presidência do CNMP. Um entendimento vigente no grupo de apoio a Raquel, por exemplo, é que a política penitenciária no país fracassou — para além da ineficácia, contribui para o aumento da criminalidade a atuação de grupos organizados dentro dos presídios.

Os primeiros posicionamentos da gestão de Raquel já contrariam a bancada ruralista. O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), diz que a PGR deve atuar sem ativismo:

— Vou dar o exemplo do norte de Mato Grosso, o maior produtor de soja do Brasil. Imagina todo mundo que foi levado para lá, construiu cidades, está lá há 40, 50 anos, comprou, pagou por sua terra, pagou impostos durante 70 anos, e agora simplesmente o marco temporal é de 1934 e vai se dizer que existia lá uma reserva indígena de 12 índios numa área de 50 mil hectares! E todas as pessoas terão de ser desapropriadas. É preciso ter um pouquinho de cautela — afirmou o deputado.

O vice-procurador-geral da República entende que o marco temporal para demarcação de terras indígenas é o estabelecido desde a Constituição de 1934, e não uma linha de corte a partir de 1988, ano da Constituição vigente. Mariz Maia defende que decisões do STF, como a que eximiu a União de indenizar o governo de Mato Grosso por demarcações de terras, sacramentam esse entendimento.

Secretário-executivo do Centro Indigenista Missionário (Cimi), entidade ligada à Igreja Católica, Cleber Buzatto tem posição crítica à atuação de Janot. Segundo ele, foi uma gestão “bastante protocolar”, que quando instada a se manifestar sobre o tema, apresentou pareceres, mas não tomou a iniciativa de defender questões indígenas. Entre as medidas que ele acha importante serem tomadas por Raquel está a de investigar assassinatos de lideranças indígenas e quilombolas. Em sua avaliação, houve retrocessos nesse campo. Buzatto também espera que a procuradora-geral questione no STF o parecer da AGU que consagra o ano de 1988 como marco temporal para a demarcação de áreas indígenas:

— Eu acho que é uma iniciativa importante, uma vez que o presidente Temer não está respondendo às demandas dos povos indígenas, que, por meio de mobilizações políticas, têm cobrado a revogação desse parecer justamente por sua inconstitucionalidade.

Na posse, Raquel deu um tom religioso a seu discurso. Citou o papa Francisco, pediu a proteção de Deus e agradeceu a presença do núncio apostólico (embaixador do Vaticano) e do arcebispo de Brasília na cerimônia. O presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), Antonio Maffezoli, diz não ver problema:

— Por decorrência da laicidade do Estado, as instituições públicas têm de agir independentemente das crenças pessoais de seus membros e de quem as lidera, porque é um momento passageiro.

O presidente da Anadep destacou que a gestão de Janot focou muito na parte criminal, e tem a expectativa de que Raquel priorize questões ligadas a direitos humanos, meio ambiente e índios, até pela formação acadêmica nessa área. Maffezzoli pediu atenção especial à violência policial e aos pedidos de federalização de investigações de assassinatos, que costumam ficar parados na PGR:

— O pedido de federalização só pode ser feito pelo procurador-geral de República ao STJ.

25/09/2017

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